sexta-feira, outubro 19, 2007

 

O Tribunal Constitucional



No dia 1 de Fevereiro de 2006 Teresa Pires e Helena Paixão apresentaram-se na 7ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa a requerer o início do processo do seu casamento.

Contudo, a sua pretensão foi liminarmente indeferida pelo facto de serem do mesmo sexo, já que o artigo 1.577º do Código Civil define «casamento» como «o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida».

Inconformadas com esta decisão, Teresa Pires e Helena Paixão dela interpuseram recurso para o Tribunal Cível de Lisboa, em primeira instância, e depois, para o Tribunal da Relação de Lisboa e para o Supremo Tribunal de Justiça.

Ora,
depois de esgotados os meios jurisdicionais comuns sem que lograssem fazer valer os seus direitos, e uma vez que a razão do seu inconformismo se fundamentava na inconstitucionalidade das normas do Código Civil que impedem o seu casamento, Teresa Pires e Helena Paixão interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional.

Já no passado mês de Setembro, o Tribunal Constitucional considerou que as motivações do recurso que Teresa Pires e Helena Paixão tinham apresentado se fundamentavam, em concreto, na questão da inconstitucionalidade material das normas que impedem o seu casamento.
Por isso, foi admitida a subida do seu recurso para o Tribunal Constitucional.

Hoje, dia 19 de Outubro de 2007, Teresa Pires e Helena Paixão entregam no Tribunal Constitucional as suas alegações de recurso.

A elaboração destas alegações foi um longo e absorvente trabalho de muitas semanas, porque acabou por se revelar para mim de uma complexidade enorme, e que me exigia um conhecimento mais aprofundado desta vastíssima área das ciências jurídicas que é o Direito Constitucional.

Para isso, foi absolutamente essencial a colaboração inestimável de muitas pessoas que, logo que souberam da interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, quiseram solidarizar-se incondicionalmente com este projecto e que, por isso, seria de uma profunda injustiça que não fossem aqui mencionadas de um modo muito especial.

Refiro-me em primeiro lugar ao Pedro Múrias e ao Paulo Corte-Real cuja amizade foi inexcedível e cuja colaboração foi tão gigantesca quanto incansável.
Mas tenho de referir-me também a mais algumas pessoas que, embora prefiram não ser identificadas, merecem-me igualmente aqui uma palavra de enorme apreço. Todas elas sabem a quem me refiro.

Igualmente imprescindível foi a colaboração de todos aqueles que elaboraram os «pareceres» que serão entregues no Tribunal Constitucional em anexo às alegações.

Todos esses pareceres nos foram oferecidos “pro bono”.
Pela profundidade técnica que os distingue, mas também pela credibilidade científica que precede os seus nomes, não podem ficar aqui sem uma especial referência todos os seus autores:
- Prof. Doutor Carlos Pamplona Corte-Real;
- Dr.ª Susana Brasil de Brito;
- Dr. Pedro Múrias (online - AQUI);
- Dr.ª Margarida Lima Rego;
- Dr. Luís Duarte d’Almeida;
- Dr.ª Isabel Moreira;
- Prof. Doutor Miguel Vale de Almeida;
- Prof. Doutor Júlio Machado Vaz.
Um outro parecer, da autoria do Prof. Doutor David Duarte, será mais tarde junto à alegações.

Todos aqueles pareceres se revelaram essenciais a uma fundamentação técnica mais sólida e coerente das alegações, e forneceram argumentos absolutamente irrebatíveis e, quero crer, absolutamente estanques a qualquer refutação.
Prova disso é a quantidade imensa das citações de todos os pareceres que se pode encontrar nas alegações.

E pronto.
A partir de hoje cabe exclusivamente ao Tribunal Constitucional uma decisão sobre o processo do casamento de Teresa Pires e Helena Paixão.

Mas, mais do que isso, com este processo, decerto ficarão também entregues nas mãos da justiça constitucional portuguesa todos os casos de cidadãos homossexuais a quem injustificadamente tem sido negado o acesso a um direito que mais não é do que a mera celebração de um simples contrato: o casamento.





A L E G A Ç Õ E S



TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
Xª Secção
Processo nº.xxx/07

Exmºs. Senhores Juizes Conselheiros
do Tribunal Constitucional:


Teresa ... Pires e Helena ... Paixão, Recorrentes no processo à margem referenciado, tendo nesse sentido sido notificadas, e de acordo com o disposto no artigo 79º da Lei do Tribunal Constitucional vêm a V. Exªs. apresentar as suas

A L E G A Ç Õ E S

o que fazem nos termos e fundamentos seguintes:

Vem o presente recurso para este Tribunal Constitucional da decisão proferida quer, logo em primeiro lugar, pelo Sr. Conservador da 7ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa quer, depois, das decisões jurisdicionais que se lhe seguiram, e que não admitiram o processo de casamento que foi requerido pelas ora Recorrentes, com o fundamento de que estas são do mesmo sexo.

Pois, reconhecendo-se embora que ambas as recorrentes são inequivocamente dotadas de plena personalidade e capacidade jurídica e judiciária e, por isso, de plena capacidade matrimonial, tal como esta vem exigida nos artigos 1.596º e 1.600º do Código Civil, a celebração do seu casamento não seria admissível face ao teor da definição legal e do conceito de «contrato de casamento» contida no artigo 1.577º do Código Civil, que define «casamento» como
«o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida»,
e face ainda ao teor do quanto consta na alínea e) do artigo 1.628º do Código Civil, que fere de inexistência jurídica o casamento celebrado entre duas pessoas do mesmo sexo.

Assim,
e inconformadas com esta opinião do Conservador da 7ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa, dela as Recorrentes interpuseram recurso para o Tribunal Cível de Lisboa e, depois, para o Tribunal da Relação de Lisboa, sempre com base na manifesta e inequívoca inconstitucionalidade das normas em que tais decisões se sustentavam.

Contudo,
o que é facto é que ambas aquelas instâncias jurisdicionais acabaram por julgar conformes com os princípios constitucionais tanto a decisão do Sr. Conservador da 7ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa como todas as normas invocadas como seu suporte, designadamente as normas constantes do artigo 1.577º e da alínea e) do artigo 1.628º. ambos do Código Civil.
Ora,
não podem as Recorrentes de forma alguma conformar-se com nenhuma destas decisões pois, tal como o vêm sistematicamente repetindo, as mesmas são desconformes com a Constituição da República Portuguesa e também com os mais básicos princípios fundamentais e programáticos que na mesma vêm estabelecidos, e mesmo até inderrogavelmente determinados,
e que, estão firmemente persuadidas, têm sido ignorados pelas decisões administrativas e jurisdicionais que sobre os mesmos se pronunciaram.
Assim,
e por uma questão de sistematização, não podem as Recorrentes deixar de começar por se referir ao quanto é tão inequivocamente determinado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa que, sob a epígrafe «Princípio da Igualdade», estabelece:

«1 – Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
«2 – Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual».

Ora,
se dúvidas houvesse quanto à intenção programática e de estabelecimento de um princípio fundamental por parte do legislador constitucional,
a própria formulação histórica do «Princípio da Igualdade» feita pelo artigo 13º da Constituição seria absolutamente esclarecedora.
De facto,
a formulação original daquela disposição constitucional proibia já a discriminação em razão de «ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social».
Mas,
o que é verdade é que o legislador constitucional de 2004 «não se deu por satisfeito» com esta redacção e com esta formulação do «Princípio da Igualdade» contida até então no artigo 13º da Constituição.
Por isso,
ainda assim,
e à revelia até do que tantos opinadores então proclamavam como sendo uma atitude completamente desnecessária, pois (como adiante veremos mais desenvolvidamente) consideravam já previamente defendidos na Constituição todos os mais básicos princípios de igualdade humana e, assim, já suficientemente proibidas e declaradas inconstitucionais todas e quaisquer formas de discriminação, quaisquer que elas fossem,
nomeadamente, e com interesse para este caso, por força da inclusão da palavra «sexo» na redacção original da norma constitucional,
ainda assim, dizíamos,
e por, obviamente, não achar o mesmo, opinião que não nos parece susceptível de contestação fundamentada, sob pena corrermos o risco de ainda ouvirmos defender que o legislador constitucional
ora tomas decisões «redundantes» ou «inúteis» – no que se refere à formulação actual da norma constitucional,
ora, até por ironia,
toma decisões «insuficientes» ou «equívocas» – no que se refere à sua formulação inicial...
o que, em ambos os casos, admitamos, e mais ainda do que um completo absurdo, seria (a admitir-se tal tese) defender-se a criação de uma espécie de «autoridade supra constitucional» a quem era permitido arrogar-se – e até em matéria de Direitos Fundamentais – o direito de ser «mais papista que o Papa» ou, melhor dizendo aqui, «mais constitucionalista que a Constituição»,
entendeu, pois, o legislador constitucional de 2004 (Lei Constitucional nº 1/2004) a necessidade de completar e tornar absolutamente inequívoca, e extensiva mesmo a todos e quaisquer casos, a formulação do Princípio da Igualdade acrescentando conscientemente ao artigo 13º da Constituição a cristalina e claríssima expressão «ou orientação sexual».

Ora,
o significado do aditamento deste «reforço» da formulação constitucional do «Princípio da Igualdade»
a mais do que inequívoca expressão «ou orientação sexual» tem, como não podia deixar de ser – e só por si mesmo – um só e único significado:
- impedir constitucionalmente, agora mais em concreto, a discriminação dos cidadãos também em razão do facto de serem homossexuais.

Deste modo,
se a Constituição Portuguesa também como «força geradora de direito privado» (nas palavras de Mota Pinto) terá de ser respeitada e acatada não como «mera directiva programática de carácter indicativo»,
mas também como uma norma vinculativa que deve ser imediatamente «acatada pelo legislador, pelo juiz e pelos demais órgãos estaduais»,
então, constitui inequívoca violação constitucional a aplicação prática por parte de qualquer agente da administração, ou mesmo de qualquer órgão jurisdicional, de uma norma que contrarie a determinação constitucional do «Princípio da Igualdade» em razão da «orientação homossexual» de um cidadão.
Por outras palavras,
se o Código Civil impede no seu artigo 1.577º a celebração de um simples e mero contrato de natureza e consequências exclusivamente civis, como o é o contrato de casamento, a pessoas do mesmo sexo,
então a expressão «de sexo diferente» contida naquela norma é, obviamente, inconstitucional.

Mas mais:
se já o era por força da redacção original do n.º 2 do artigo 13º,
dúvidas não poderá haver de que o aditamento pelo legislador constitucional de 2004 àquele mesmo artigo da expressão «ou orientação sexual»,
mostrou agora de modo inequívoco (se equívocos ainda houvesse),
que a formulação constitucional do «Princípio da Igualdade» – muito mais agora – pretende, e exige até, sem sombra de dúvidas, que seja excluída qualquer discriminação em razão da «orientação sexual» seja ela heterossexual seja ela, obviamente, homossexual, bissexual ou transexual..
Ora,

logo neste ponto inicial das presentes alegações, impõe-se – é essa sem dúvida a expressão adequada – e até porquanto vem precisamente a propósito da conclusão que acima acabou de se deixar já preliminarmente formulada,
não podemos aqui deixar de citar a douta e adequadíssima opinião do Professor Carlos Pamplona Corte-Real,
expressa no documento que se junta no final destas alegações (que aqui não se repete na íntegra somente por meras razões de economia processual, mas que aqui se dá por integralmente reproduzido, para todos os efeitos legais).

Assim,
do «Parecer» Professor Pamplona Corte-Real (cujos sublinhados e destaques, que são feitos somente nesta citação, são exclusivamente nossos), a que dá o título preambular «Da inconstitucionalidade do Código Civil – artigos 1577º, 1628º, e) e disposições conexas – ao vedar o acesso ao instituto do casamento a casais do mesmo sexo», é imperioso que se destaque o seguinte:

Antes ainda de nos trazer a sua posição, o Professor Pamplona Corte-Real mostra-nos as mais conhecidas posições contrárias às que aqui se vêm defendendo, e às quais faz, caso a caso, uma profunda análise crítica, até frequentemente ilustrada pela genial e mordaz ironia que lhe é peculiar.

Assim,
e como ponto de partida da sua tomada de posição pela «inconstitucionalidade material da exigência, pelo Código Civil, da heterossexualidade como pressuposto do casamento», o Professor Pamplona Corte-Real começa por criticar a tese (de Pereira Coelho, Guilherme de Oliveira e Jorge Miranda), da «garantia institucional» que pressupõe que o direito ao casamento «corresponde a um núcleo essencial (…), que não poder ser “desfigurado” pelo legislador, núcleo esse em que se inseriria a exigência da heterossexualidade».

Ora,
o que é verdade é que
«nem do artigo 36º, n.º 1 da CRP (pelo contrário, a primeira parte parece acolher uma ideia ampla de Família), nem dos demais números do mesmo preceito, como bem explica J. Duarte Pinheiro, dimana qualquer perspectiva heterossexual de casamento
«(já que a paternidade, a maternidade e a adopção não só não esgotam a instituição familiar, como até são automomizáveis do casamento)».

Até por que
«o artigo 13º, nº 2, in fine, da CRP, ao acrescentar a proibição de discriminação com base na orientação sexual após a revisão constitucional de 2004, tem que ser chamado à colação nesta temática, o que os autores citados nem esboçam fazer…

Ou seja,
para o Professor Pamplona Corte-Real o que aquele autores fazem é uma definição apriorística da noção que têm do conceito de «núcleo essencial do casamento», em função de um modelo histórico legalmente desconforme.
Por outras palavras,
se o ordenamento jurídico é pleno e uno, só por inexplicável apriorismo, se pode ler o carácter heterossexual do casamento na Constituição.

Mas mais:
para Gomes Canotilho e Vital Moreira, da redacção do artigo 36º, n.º 1, in fine, e n.º 2 da Constituição decorreria ainda que aquela norma constitucional seria neutra no tocante ao recorte hetero e/ou homossexual do casamento, na medida em que é remetida para o legislador ordinário a conceptualização do instituto do casamento,
mas que, ainda assim,
«poderia ser heterossexual ou não, consoante a leitura daquele, face ao sentir social.

Nesse sentido,
Gomes Canotilho e Vital Moreira, que com o Professor Pamplona Corte-Real citamos, defendem que
«“a recepção constitucional do conceito histórico de casamento como união entre duas pessoas de sexo diferente, radicado intersubjectivamente na comunidade como instituição, não permite retirar da Constituição um reconhecimento directo e obrigatório dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo, sem todavia proibir necessariamente o legislador de proceder ao seu reconhecimento, ou à sua equiparação aos casamentos”».

Assim,
e perante esta posição, o Professor Pamplona Corte-Real continua:
«Deixam‑se aqui duas observações graves:
«em primeiro lugar, é inaceitável a inversão metodológica implícita (de que fala J. Duarte Pinheiro),
«já que os ilustres constitucionalistas como que admitem que a Constituição possa passar um “cheque em branco ao legislador comum numa matéria que pode bulir com princípios e direitos fundamentais.»,
Isto,
apesar de não se vislumbrar na doutrina daqueles constitucionalistas qualquer escrutínio da sua posição à luz do n.º 2 do artigo 13º da Constituição,
e não obstante o casamento
«ser um elemento fundamental da orgânica social (artigo 67º, n.º 1 da CRP), definidor de um proeminente estado jurídico, com indubitáveis reflexos no próprio estatuto pessoal (…).

Por outro lado,
O Professor Pamplona Corte-Real faz ainda uma segunda, mas não menos importante observação: é que
«o regime constitucional, em matéria de direitos, liberdades e garantias fundamentais, não pode ser deixado ao legislador comum, nomeadamente quando estejam em causa o princípio da igualdade (artigo 13º da CRP) e o direito de constituir família e de contrair casamento (artigo 36º, n.º 1 da CRP),
«por implicar uma subversão inaceitável da hierarquia das fontes de direito, e uma eventual violação no campo garantístico.
Assim,
«Só resta então fazer um percurso metodológico inverso: aferir, primeiro, da essência do instituto do casamento no Código Civil e discutir, depois, a sua conformação com a Lei Fundamental. Só assim poderá tentar legitimar‑se o regime nele fixado.
Então,
e percorrendo o caminho no sentido que nos é proposto, comecemos pela própria formulação que consta da redacção e da procura de uma definição legal de «casamento» feita no artigo 1.577º do Código Civil (com os “riscos” que isso sempre acarreta), constatamos que aquele preceito legal começa por definir «casamento» a um «contrato»,
o que na opinião do Professor Pamplona Corte-Real é até «tecnicamente falho».
É que, explica,
«está em causa no casamento a vigência de aspectos puramente pessoais, com incidências relevantes nos planos físico e afectivo, obviamente indisponíveis negocialmente e de forma perdurável. (...)
Nesta mesma perspectiva,
«o casamento não pode deixar de ser um acto complexo mas específico, resultante de mero encontro, solenemente formalizado, de duas declarações de vontade, dois actos jurídicos individuais auto‑vinculantes.
«Só assim se pode compreender a inaplicabilidade ao casamento de todo o típico regime dos contratos bilaterais (excepção de incumprimento, alteração de circunstâncias, resolução, etc.). Com carácter negocial, adentro do acto complexo casamento, só se poderá encontrar a convenção antenupcial, estranhamente reduzida a um papel acessório … ».
Por isso,
«o que acaba de dizer‑se, melhor permitirá enquadrar o casamento e entendê‑lo na sua índole como acto jurídico profundamente livre e íntimo».

De seguida,
destaca o Professor Pamplona Corte-Real que na mesma disposição legal o casamento é «“… é celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família …”.
Sendo certo que, nesta sequência lógica, o artigo 1628º, alínea e), afirma ser juridicamente inexistente “o casamento contraído por duas pessoas do mesmo sexo”.

Ora,
«O propósito de “constituir família” poderia sugerir a finalidade necessariamente procriativa do casamento, decorrente da própria exigência da heterossexualidade. O que entretanto está longe de corresponder ao regime jurídico legalmente estabelecido.
Com efeito,
«não encontramos na lei civil qualquer limite máximo de idade para a celebração do casamento, assim como nada obstará ao casamento de qualquer nubente, se infértil ou impotente, (desde que tal circunstância seja conhecida do outro – cfr. artigos 1636º e 1839º, nº 2, do Código Civil, e a Lei nº 32/2006, sobre Procriação Medicamente Assistida, de 26 de Julho);

Como,
«e do mesmo modo, nada pode impedir o casamento de dois homossexuais de sexo diferente, sabida que seja tal circunstância da parte de ambos.

Consequentemente,
«fica assim claro que nenhuma razão lógica pelo menos adentro da coerência sistemático‑jurídica justificará que seja vedado legalmente o casamento a pessoas do mesmo sexo, nem mesmo quando lemos apenas a própria lei comum, como o é o Código Civil.
Depois,
agora num percurso de busca da “ratio legis” do casamento na lei civil, isto é, do “espírito do sistema” (cfr. art. 10º, nº 3 do C. Civil),
mas sempre interrelacionando preceitos legais e hierarquizando‑os, se inseridos em diplomas situados em planos legislativos diferenciados, o Professor Pamplona Corte-Real conclui que existe uma clara incongruência axiológica da lei ordinária, já que não se pode ou deve ter a finalidade procriativa como essencial ao casamento.».

Posto isto,
restará ainda reflectir com o Professor Pamplona Corte-Real sobre a realidade decorrente da figura jurídica da «união de facto» (cfr. Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio) que admitiu ao lado da união de facto heterossexual a união de facto homossexual,
sendo de uma relevância que aqui merece ser sublinhada a expressa e muito significativa revogação que neste aspecto concreto mereceu a Lei n° 135/99, de 28 de Agosto).
Até por que
doutrina existe que «sustenta que a união de facto corresponderia a uma situação marginalizada pela ordem jurídica, tutelada tão-só nos aspectos excepcionalmente enunciados nos artigos 3º a 7° da Lei n° 7/2001.
Daqui se deduziria necessariamente, então,
«que a união de facto heterossexual seria apenas mais uma alternativa coexistencial, concedida e mais fragilizada na sua eficácia que o casamento, tal como sucederia com a união de facto homossexual».
Porque então, e só assim,
«se compreenderia o alcance dos artigos 1628°, alínea e) e 1630° do Código Civil que, radicalmente decretam a inexistência jurídica do casamento de pessoas do mesmo sexo».

Contudo,
esta leitura, aparentemente legível no espírito da Lei n° 7/2001 é não poderá, obviamente, colher.
Para já,
porque, desde logo aquele diploma legal «está longe de permitir ver na situação dos unidos de facto uma situação que exorbitaria do direito, e se confinaria ao puro e mero facto».
Pois,
«exigindo dois anos de convivência para que a união de facto releve, a Lei n° 7/2001 reconhece um leque ainda significativo de direitos aos parceiros: em matéria de tutela da casa de morada [artigo 3°, alínea a)] própria ou comum (artigo 4°) ou tomada de arrendamento (artigo 5°); em matéria de licenças, faltas, férias e preferências na colocação profissional dos unidos de facto, a nível da Administração Pública [artigo 3°, alínea b)] e do contrato individual de trabalho [artigo 3°, alínea c)], equiparando-os aos cônjuges; em matéria tributária [artigo 3º, alínea d)]; e em matéria de segurança social [artigos 3°, alínea e), f) e g) e 6°].
Sendo assim,
o que é verdade é que se «tais direitos só são entendíveis se conexos com deveres, ainda que de modelação bem mais flexível», então, «o dever de respeito, o dever de assistência, o dever de coabitação seriam o reverso lógico dos direitos conferidos pelos artigos 3º e segs., os quais se manteriam até à extinção da união de facto» (...) o que, antes de mais, lhe confere «o cunho de um verdadeiro estado jurídico familiar.
Mas,
é também facto que
«o que terá preocupado o legislador de 2001, no fundo, não foi certamente conceder, por via da união de facto, uma alternativa coexistencial ao casamento heterossexual
até por que
«tal objectivo corresponderia a uma descaracterização substancial do dito casamento, incompreensível até por se estar ante realidades vivenciais integralmente espelhadas, e por a lei civil não abdicar de plúrimas áreas de injuntividade tipificadoras do casamento.
Ou seja,
«É sabido que a lei tipifica as relações jurídicas que tem por familiares (artigo 1576°), o que seria inegavelmente posto em causa pela Lei n° 7/2001.
«Estar-se-ia ante uma verdadeira fraude à lei ... de origem legal!!!
Então,
«o que visou o legislador com a Lei n° 7/2001?
«...antes de mais, impedir a dignificação jurídica da comunhão plena de vida, não hetero- mas homossexual,
isto
«ao permitir o “emparelhamento” da união de facto hetero- e homo-, “se servia” sem dúvida um casamento “à la carte” às pessoas de sexo diferente, em contradição insanável com a supra‑sublinhada imperatividade legal típica do casamento.

Assim sendo,
«a liberalização do casamento heterossexual por via do recurso legislativo à união de facto, “matava dois coelhos com uma única cajadada”:
«tornava a comunhão plena de vida mais autêntica por adequada a uma mais livre afirmação individual e obtinha, por outro, a subalternidade jurídica da união homossexual.
«Sem que, contudo, e em rigor, possa entrever‑se qualquer diferença de fundo na índole da união de facto e do casamento que embatem precisamente nos mesmos princípios e valores quanto ao relacionamento intersubjectivo do casal, conexos afinal com a tutela da personalidade.».

Assim, finalmente,
e após esta elucidativa exposição, o Professor Pamplona Corte-Real mostra-nos estas conclusões:
O artigo 13º, n.º 2 da Constituição, na sua actual redacção, proíbe que alguém seja privilegiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever, em razão da sua da orientação sexual”.
O aditamento da expressão «ou orientação sexual», ainda que se defenda que reveste (como defende Jorge Miranda) de características meramente interpretativas do quanto se previa já na redacção anterior da norma, significaria que estaríamos perante da interpretação autêntica com o objectivo de tornar explícito e esclarecer o sentido normativo da redacção anterior.

Ora,
«perante um enunciado reconhecidamente exemplificativo,
«acrescentar‑se em 2004 a menção da orientação sexual dissipou radicalmente qualquer dúvida, com a vinculatividade (e autenticidade) reconhecível à dita interpretação.

Donde,
«resulta que não reconhecer o direito ao casamento aos homossexuais, direito fundamental enunciado no artigo 36º, nº 1 da CRP – sobretudo porque o casamento, como se viu à face do Código Civil, não é um acto finalisticamente conexo com uma expectável perspectiva procriadora – é inequívoca e materialmente inconstitucional.

Mais:
«a modelação sexual do casamento é, será sempre, livre e personalizadamente feita por cada casal, no contexto e na privacidade da comunhão de vida que lhe é inerente, e na qual radica, como se viu, a sua essência jurídica.
Aliás,
«as fronteiras e especificidades homo‑ e heterossexuais são cientificamente reconhecidas como variáveis e flutuantes.
«A sexualidade, ou melhor, o sexo, é uma realidade com várias matizes, com vários índices que a podem conotar, morfológicos e psicológicos, físicos e culturais.
Ora,
«e se casar não é procriar, e se antes pressupõe sempre e apenas uma plena comunhão vivencial, nos planos sexual e, ou espiritual – ainda por cima desfuncionalizada após a Reforma do C. Civil de 1977 – não se vislumbra como sustentar pertinentemente a índole jurídica heterossexual do casamento».

Mas mais ainda:
«O casamento é gerador de um estado jurídico, complexo mas proeminente e predeterminante de um estatuto social marcadamente diferenciado do suscitado (…) pela união de facto, a qual é juridicamente eficaz,
«porém de forma limitada e subalterna (mesmo assim criticada por certa doutrina face à sua estrutural precariedade).

Por isso,
«Defender‑se o exclusivo acesso de um casal de duas pessoas do mesmo sexo à união de facto – que o legislador terá querido, ao transe, reconduzir literalmente a uma situação extrajurídica – não se vê que não signifique ou que não envolva uma ostensiva discriminação, que exorbita a razoabilidade e a racionalidade (Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira).
Assim,
«e por alguma razão, aliás, países como a Holanda, a Bélgica, a Espanha, o Canadá, a África do Sul e alguns estados americanos, admitem, já hoje em dia, e de pleno, o acesso ao casamento por casais do mesmo sexo, para além de que a maioria dos países nórdicos e anglo‑saxónicos não discriminam, em termos de regime jurídico, a “parceria registada” e “casamento”.

Mas há mais:
«é que o casamento é, por excelência, um instrumento do exercício do direito à afirmação da identidade pessoal e ao desenvolvimento, livre e coerente, da personalidade, no respeito pela reserva de intimidade da vida privada (artigo 26º, n.º 1 da CRP), direitos primacialmente salvaguardados num Estado de Direito Democrático (artigo 2º da CRP), assente no primado da dignidade humana (artigos 2º e 26º, n.º 1 da CRP) e da liberdade (artigo 27º da CRP).
Ou seja,
«Não pode pois relevar a ideia de que a exclusão dos casais homossexuais (e do mesmo sexo) do acesso ao casamento, radicaria ainda, como ousam sugerir alguns, no «princípio da igualdade», por não se poder tratar de modo igual o que igual não seria,
«A falácia é evidente, como se demonstrou, a discriminação, essa sim, é flagrante,
em total desrespeito ao artigo 13º da Constituição, preceito que já sensibilizou o Tribunal Constitucional em temática afim (vd. Acórdão. do T.C. n.ºs 247/2005 e 351/2005), pois que «a liberdade de cada qual cessa, realmente, onde começa a dos outros».
Depois,
e a terminar, ensina-nos ainda o Professor Pamplona Corte-Real que
«o princípio da igualdade tem conteúdos e limites vinculados, sob pena de poderem ser praticamente desditos pelo legislador ordinário, hierarquicamente subalterno.
«Nem se compreenderia que de outro modo fosse, estando em causa o campo garantístico indeclinável num Estado de Direito.
«Encontrar tais conteúdos e limites dependerá (...) de uma leitura interrelacional e complementar de preceitos legais, hierarquicamente inserida, (..) sob pena de se poder pôr em causa o princípio da separação dos poderes.

Numa palavra,
e sempre citando o Professor Pamplona Corte-Real,
«Teresa Pires e Helena Paixão quiseram casar civilmente.
«Não o conseguiram (apesar do teor do artigo 18º, nº 1 da CRP o consentir, entende‑se);
«esgotaram depois as vias adjectivas comuns.
«Urge, pois, agora, que o Tribunal Constitucional, no âmbito da função de fiscalização concreta da constitucionalidade que lhe compete [cfr. artigos 280º, n.º 1, alínea b) e 6º da CRP],
«declare, como é de direito e se deixou cabalmente demonstrada, a inconstitucionalidade material da pretensa índole heterossexual do casamento,
«mais concretamente, dos artigos 1577º e 1628º, alínea e) (e de todos com os mesmos logicamente conexos),
«com os efeitos juridicamente consequentes».
Ora,
nesta sequência, mas agora numa perspectiva de integração e de inter-relacionamento entre o mundo jurídico e as ciências antropológicas, não podemos aqui deixar de citar a opinião do Professor Miguel Vale de Almeida,
expressa no documento que se junta no final destas alegações (que aqui não se repete na íntegra somente por razões de economia processual, mas que se dá por integralmente reproduzido, para todos os efeitos legais).

Assim,
na sua «Declaração» (cujos sublinhados e destaques, que são feitos, exclusivamente nesta citação, são exclusivamente nossos) e que intitula
«A Antropologia Social Contemporânea e o Casamento Entre Pessoas do Mesmo Sexo», o Professor Miguel Vale de Almeida diz-nos:

«Aquilo que tradicionalmente se designa por “Antropologia Clássica” (...) considerava a temática do parentesco e do casamento como o núcleo da sua identidade disciplinar.
«A razão para tal era aparentemente óbvia: as sociedades anteriores à modernidade – ou que haviam permanecido marginais em relação a ela – estruturar-se-iam em torno de regras de parentesco.

«O adquirido antropológico de meados do século XX sustentava o carácter universal das seguintes estruturas sociais:
«- todas as sociedades organizam de algum modo o dimorfismo sexual da espécie em formas simbólicas de género;
«- todas as sociedades constroem uma teoria sobre a reprodução humana e sobre a sexualidade (não necessariamente em conjunto);
«- todas as sociedades organizam a filiação e a descendência.
«Nas últimas décadas do século XX deram-se, todavia, importantes transformações:
«Por um lado, o âmbito da pesquisa antropológica deixou de estar ligado a sociedades ditas “primitivas” – questionando mesmo a validade desta classificação – alargando-se a toda(s) a(s) sociedades(s);
«Por outro, as concepções teóricas sobre o parentesco e o casamento passaram por fortes críticas e revisões, sobretudo graças à influência da problematização do género e da sexualidade.
«Um dos efeitos curiosos destas transformações é que a nossa visão clássica do parentesco como ventríloquo do político, do económico, etc., se pode agora aplicar também às sociedades ditas modernas.
Assim,
«...o casamento entre pessoas do mesmo sexo é uma consequência lógica da dinâmica das práticas do parentesco em sociedades e culturas como a nossa, decorrendo da aplicação – a identidades sociais diferentes – dos mesmos princípios aplicáveis ao casamento entre pessoas de sexo diferente».
(...)
«Na economia do sexo e do género... seria a divisão do trabalho pelos sexos o verdadeiro mecanismo de instituição de um tabu contra a semelhança de homens e mulheres. Este tabu, exacerbando as diferenças biológicas entre os sexos, teria como efeito a criação do género. Tratar-se-ia, todavia, de um tabu também sobre formas de emparelhamento que não entre homens e mulheres.
«Os indivíduos seriam, então, socializados (e socializados com género) de modo a garantir o casamento, pelo que a heterossexualidade pode ser vista como uma instituição social, já que o tabu do incesto pressuporia um tabu anterior contra a homossexualidade. (...)
«A teorização clássica do parentesco e do casamento estava preocupada sobretudo com a ideia de estabilidade social e com a divisão entre os processos reprodutivos biológicos e as lógicas da reprodução social.
«Estes dois fundamentos têm sido postos em causa. O primeiro, pela velocidade, extensão e diversidade das transformações nas relações de género, sexualidade e família nas sociedades contemporâneas, levando a uma atenção às práticas do parentesco e aos discursos sobre o parentesco – ultrapassando assim uma atenção exclusiva à estrutura. O segundo, por uma visão menos dicotómica da separação entre natureza e cultura, em que a primeira é vista como parcialmente constituída pela segunda. (...)
«Um aspecto central é a assunção de que a biologia não tem em toda a parte o mesmo tipo de função fundacional que tem no ocidente. E que, de qualquer modo, mesmo no Ocidente, as fronteiras entre biológico e social estão hoje esfumadas.
«É assim que o termo relatedness surge para denotar abertura aos termos nativos sobre “relacionar-se”, “estar relacionado com”, em vez de dependência a definições prévias de estruturas, regras e nomenclaturas de parentesco.
«Não admira, pois, que muitos trabalhos recentes sobre parentesco, se concentrem na identificação daquilo que, na prática, constitui para as pessoas, a rede de relações significativas e eficazes, no campo dos afectos, do cuidado e da materialidade.
«Note-se que muitos desses trabalhos são já sobre as práticas e os sentidos da relações entre pessoas do mesmo sexo, com ou sem filhos biológicos (feitos com ou sem sexo) ou adoptados, uma vez que a atenção às práticas e sentidos da afectividade, do cuidado e da responsabilidade material não implicam um apriorismo heterossexual. (...)
«A isto acresce, evidentemente, o critério etnográfico, central na metodologia antropológica.
Ou seja,
«o facto de existirem sociedades e culturas onde casais do mesmo sexo e famílias com pais do mesmo sexo fazem parte da paisagem social; havendo mesmo sociedades onde o Direito lhes reconhece existência legal.
«O casamento entre pessoas do mesmo sexo é agora parte do fresco etnográfico da humanidade, sendo, portanto, um adquirido, e parte intrínseca da análise antropológica. (...)
«...O que é que, em antropologia, sabemos?
«Sabemos que a vida em sociedade é um feixe de relações; que essas relações passam pelo crivo de alguma aceitação e definição social;
«que essas relações são práticas significativas que constituem o sentido de Pessoa e de grupos, da família baseada em relações de proximidade e intersubjectividade até a colectivos maiores e imaginados, como os estados-nação;
«que há guiões culturais que fornecem os símbolos que dão sentido a essas relações;
«que essas relações assumem formas e conteúdos muito diferentes consoante tempos e culturas;
«e que todas estas relações e instituições estão sujeitos a conflito e mudança, sendo essa mudança feita através da adaptação e abrangência a/ de realidades novas por parte do guião pré-existente.
«...não inventamos nada de radicalmente novo nem abolimos definitivamente estruturas anteriores. O casamento entre pessoas do mesmo sexo é a transformação da lógica do casamento apenas em termos da abrangência de novas categorias de indivíduos – neste caso definidos pelo sexo e género.
(...)
«Em que é que todos estes elementos contribuíram para o surgimento da reivindicação do casamento entre pessoas do mesmo sexo?
«A resposta é relativamente simples: a relação de aliança sancionada na forma “casamento” deixou praticamente de existir.
«Passámos a dar [à relacionalidade da relação conjugal] o sentido de relação binária privilegiada, constitutiva da coabitação, da partilha económica, da satisfação sexual e emocional.
«De tal modo que não precisa já do reconhecimento ritual e legal a não ser quando este
(a) é condição necessária para o usufruto de certos direitos e/ou
(b) oferece status e/ou reconhecimento social segundo os valores vigentes numa sociedade ou época.
«A relação conjugal não é já, tão-pouco, necessária para o reconhecimento dos laços de filiação nem para o exercício da parentalidade (pense-se no fim da categoria da ilegitimidade, pense-se na monoparentalidade, na adopção, na reprodução medicamente assistida, nas recomposições familiares pós-divórcio e segundos casamentos, etc., todas formas de adaptação a princípios reconhecidos como mais nobres do que as formas).
«Os estudos etnográficos recentes sobre conjugalidade do mesmo sexo e sobre homoparentalidade demonstram o desejo de integração social dos informantes: o impedimento do acesso ao casamento civil ou a remissão para figuras legais específicas para homossexuais (mesmo que diferenciando-se apenas na designação, algo que constitui uma forma de violência simbólica) constituem uma forma de desigualdade simultaneamente material e simbólica».
Na verdade, esclarecedor.

Por isso mesmo,
e se, como dissemos, nas palavras de Mota Pinto, as normas constitucionais são, antes de mais, uma «força geradora de direito privado» inequivocamente vinculativas e que devem ser imediatamente «acatadas pelo legislador, pelo juiz e pelos demais órgãos estaduais»,
então,
e como vimos defendendo, foi inegavelmente desconforme com os mais básicos ditames constitucionais o indeferimento do processo de casamento das Recorrentes por parte do Sr. Conservador do Registo Civil,
que, embora tecnicamente apto a tomar tal decisão, legalmente dotado de tais poderes e, mais até do que isso, legalmente obrigado (!) a tal atitude,
deveria, ele próprio e à partida, ter considerado inconstitucionais as normas do Código Civil que estão em questão e, consequentemente, deveria ter dado início ao processo administrativo e legal que culminaria na formalização do contrato de casamento civil das Recorrentes.
Mas, infelizmente, não o fez.
Embora o devesse ter feito.
Pois, como se não bastasse o que acima se afirmou,
como se ainda alguém pudesse ter dúvidas,
bastar-lhe-ia ter obedecido ao quanto de modo tão esclarecedor está determinado no n.º 1 do artigo 18º da Constituição que, sob a epígrafe «Força Jurídica» determina que
«Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas».

Ora,
não o tendo feito, a decisão do Sr. Conservador do Registo Civil resulta fundamentada em normas clara e inequivocamente inconstitucionais,
tal como sucedeu com as decisões judiciais que se lhe seguiram.

Assim,
e postas perante esta decisão, com a qual não puderam de forma alguma conformar-se, e absolutamente persuadidas, como ainda estão, da sua ilicitude constitucional, as Recorrentes dela interpuseram recurso,
sempre precisamente com esse fundamento,
primeiro, e em obediência às determinações adjectivas do Código de Registo Civil, para o Tribunal Cível de Lisboa e, depois, deste para o Tribunal da Relação de Lisboa.

Foi assim que,
no decorrer do normal processamento que se seguiu, as Recorrentes começaram por receber e deparar com as alegações oferecidas pelo Sr. Procurador Adjunto do Ministério Público junto do Tribunal de 1ª Instância, as quais, por não deixarem de surpreender pelo seu teor, não podem as Recorrentes deixar de se lhes referir.

Na verdade,
não podem as Recorrentes concordar com a consideração do Ministério Público que, a propósito do contrato civil de casamento afirma que
«os limites [à liberdade contratual] impõem-se especialmente neste tipo de contratos, que reflectem de modo particular a filosofia do Estado e apelam à sensibilidade social e religiosa».

Ora,
não desde logo não é perceptível, em que norma, ou em que Princípio do Estado de Direito se encontrou uma «Filosofia do Estado», ou até uma «Filosofia Oficial do Estado»
muito menos quem poderia ter legitimidade para a definir ou interpretar, muito menos para a aplicar ou até, quem sabe «impô-la» aos cidadãos portugueses no seu conjunto,
independentemente até dos seus critérios éticos, ou opções morais, religiosas ou políticas,
ou, por assim dizer, qualquer que fosse a sua «Filosofia Pessoal».
Pois que,
Portugal é um «Estado de Direito Democrático» baseado no pluralismo de expressão e organização política democráticas (Cfr. art.º 2º da Constituição Portuguesa),
sendo garantida a cada um dos seus cidadãos (Cfr. n.º 2 do art.º 13º da Constituição) sem possibilidade da sua distinção ou discriminação, plena liberdade de religião ou de convicções políticas e ideológicas.
Contudo, é certo,
outra coisa bem diferente será, sim, por exemplo a «Ordem Jurídica» portuguesa de onde facilmente poderá, se assim se entender, deduzir-se um determinado «Ordenamento Jurídico», como sinónimo de um conjunto normativo coerente, baseado e fundamentado em regras legítimas e democráticas,
entre as quais se encontra, logo no seu topo, a «Constituição da República Portuguesa», de onde, uma vez mais se diga, decorrem os princípios de liberdade mais fundamentais que se referiram,
e onde em parte alguma se encontra, nem poderia encontrar, qualquer previsão ou imposição, ainda que indirecta ou implícita, de uma «Filosofia de Estado» que pudesse ser sequer sugerida, muito menos imposta, aos cidadãos, imposta coercivamente, claro, como acontece com qualquer norma.
Pois,
o que é facto é que a História da Humanidade nos deu já grandes e valiosas lições e, delas, solenes e muito sérios avisos, das consequências que podem advir das tentativas de imposição, ou sequer, por vezes, de uma mera sugestão de «Filosofia de Estado», ainda que sob designações mais ou menos encapotadas ou eufemísticas.
Mas mais:
Como acima vimos nas alegações oferecidas pelo Sr. Magistrado do Ministério Público pode ainda ler-se:
«Os limites à liberdade contratual apelam à sensibilidade religiosa».
Contudo,

também esta afirmação é inaceitável para as Recorrentes que, por isso, a rejeitam, até por que, e logo em primeiro lugar, quando faz referência a «sensibilidade religiosa» ou aos «limites à liberdade contratual» que daquela afirma que decorrem,
se deixa por esclarecer devidamente o seguinte:
- Esses tais «limites à liberdade contratual» apelam à «sensibilidade religiosa»... de quem?...

Ora,
e sendo o Estado Português inequivocamente laico por determinação e imposição constitucionais, não será, decerto, de uma espécie de «sensibilidade religiosa “oficial” do Estado», ou sequer por este imposta, que decorrerão esses «limites à liberdade de contratar»,
nem sequer, diga-se à «sensibilidade religiosa» desta ou daquela pessoa em detrimento de qualquer outra, pois daí resultaria uma desigualdade e uma discriminação eticamente inaceitáveis e constitucionalmente inadmissíveis, e, muito menos, e também por isso, desta ou daquela confissão religiosa.

Ou seja,
é, de facto, inaceitável, porquanto infundamentado e, mais até do que isso, porque constitucionalmente ilícito, que se defenda que um contrato, diga-se mais, um contrato de natureza meramente civil como o contrato de casamento,
com regras, determinações e consequências exclusivamente civis,
e cuja definição e imposição competem exclusivamente ao Estado,
teria a sua «liberdade de celebração» coarctada, restringida ou sequer limitada por uma qualquer «sensibilidade religiosa»,
que nem sequer se conhece qual é ou a quem pertence,
muito menos se conhecendo, como é óbvio, por que motivo, com que legitimidade, com que fundamento ético, ou com que fundamento legal se arrogaria poder impor-se e sobrepor-se às regras do Estado de Direito.

Depois,
afirma ainda o Sr. Magistrado do Ministério Público nas suas alegações, pese embora a existência da «Lei das Uniões de Facto (cfr. Lei n.º 7/2001 de 11/5 – embora ainda não regulamentada), que, na sua opinião «o ponto de partida para a família» só pode ser... o casamento.
Com o que as Recorrentes, uma vez mais, discordam.

Até por que,
há muito deixou já sequer de constituir polémica ou sequer motivo de debate, tanto na doutrina como também nas jurisprudências, ordinária e constitucional, que a noção de «família» parte inequivocamente de uma base pessoal e que é transversal e independente da orientação sexual dos seus componentes,
e que se baseia e decorre fundamentalmente de um projecto pessoal e sentimental de partilha e de comunhão de vida.

Deste modo,
não podem as Recorrentes, também aqui, de deixar expressa a sua discordância com tal tese, tanto mais que, se aceite, ela passaria a constituir conclusão obviamente necessária de que os milhares e milhares de pessoas – mesmo que até de sexos diferentes – que em Portugal vivem juntas, num projecto comum de comunhão de vida,
muitas vezes há várias décadas e tantas vezes com filhos e netos,
não seriam, afinal... uma família.
O que, uma vez mais se repita, é para as Recorrentes uma tese tão inaceitável como incompreensível.

Recorde-se até, a propósito, como em Portugal, existem tantas e tantas regiões em que é tradicional o homem e a mulher pura e simplesmente, como se usa até dizer, «juntam os trapinhos»...

Ora,
se esses portugueses, ainda que não estejam unidos por um contrato de casamento, que tem uma natureza exclusivamente civil (embora possa ser festivamente celebrado no âmbito de qualquer cerimónia religiosa, qualquer que seja a confissão dos contratantes),
levam a cabo um projecto de vida comum e um sincero compromisso sentimental, que exercem em «plena comunhão de vida»,
podendo até mesmo ter vários filhos e já ter netos,
podendo até ou não acordar determinações de ordem patrimonial para vigorarem em vida ou “mortis causa”,
então, será absolutamente inequívoco que esses portugueses,
independentemente da sua «ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual»
constituem, inequivocamente... uma família.

Coisa bem diferente,
serão os laços contratuais que possam um dia vir, ou até nunca vir, de um casamento, pelo qual a família poderá um dia optar,
sempre, exige-se, em completa liberdade e sem constrangimentos, pressões ou imposições de ordem política, social, moral, religiosa ou qualquer outra, e sempre com perfeita e total capacidade de determinação e de escolha.
Mas, qualquer que seja o sentido dessa opção, sempre uma família.

Porque,
como se disse,
o raciocínio de ordem “inversa”, como o defendeu o Ministério Público é constitucionalmente indefensável.
De facto,
não podem as Recorrentes concordar que, em primeiro lugar comece por «determinar-se» que só o casamento é capaz de «produzir» famílias.
Porque,
como é evidente,
esta afirmação é feita «partindo do fim para o princípio», isto é, utilizando uma conclusão a que se quer chegar como base de fundamentação para ela própria,
mas sempre e unicamente com o objectivo e o único fito de, depois, de se ter considerado previamente que, por força de uma pretensamente adoptada «Filosofia de Estado», e em função de uma determinada «sensibilidade religiosa» pretensamente respeitada, mesmo que ainda não se saiba qual ela é, e ou quem a defende ou professa,
afinal, dizíamos, não é tolerável que dois cidadãos ou cidadãs homossexuais, ainda que vivam juntos num projecto de vida comum e num sincero compromisso sentimental,
não lhes é permitido que se considerem... uma família.

Mesmo, diga-se,
que o Sr. Magistrado do Ministério Público acabe, enfim, por reconhecer que a «Lei da União de Facto», abrange também inequivocamente, e como ele próprio o diz, os «casais homossexuais»,
não resistindo as Recorrentes à tentação de aqui deixar sublinhada a expressão que o Ministério Público acaba no final por utilizar e «deixar escapar» e que é... «casais homossexuais», ainda que, por força da sua prévia argumentação, que as Recorrentes, repita-se, rejeitam em absoluto,
acabe, infelizmente, por chegar à infundamentada conclusão de que esses mesmos «casais homossexuais», apesar de serem «um casal», não são, ainda assim, «uma família».

Mas, de seguida,
não podem ainda as Recorrentes de aqui deixar expressa, mais ainda do que, como partes nestes autos, a sua manifesta discordância, mas muito mais ainda, como cidadãs portuguesas,
a sua indignação, pelas afirmações contidas nas alegações do Sr. Magistrado do Ministério Público que a determinada altura decide proferir que
«Que é preferencialmente no seio do casamento que deve ser feita a procriação».
e também
«Que ao Estado incumbe o objectivo de conservação da espécie».

Ora, como é óbvio,
e como não podia deixar de o ser num Estado de Direito e num Estado cuja Democracia todos pretendemos quotidianamente aprofundada,
qualquer uma destas duas afirmações é na Ordem Jurídica Portuguesa completamente destituída de justificação e de fundamentação legal.

Porque,
mesmo que, por momentos, ignoremos que nenhuma delas é susceptível de aplicação prática, de implementação e, muito menos de vigilância, de aplicação coerciva ou de qualquer forma de sancionamento em caso de violação,
ainda assim,
não poderiam as Recorrentes deixar de aqui constatar que, sinceramente, não vislumbram qualquer possibilidade de justificação destas afirmações, nem sequer a mais pequena e recôndita norma legal que seja capaz ou minimamente susceptível de a fundamentar juridicamente.

Mas, acresce ainda por outro lado, que
as Recorrentes sinceramente acabam por não entender esta linha de argumentação por parte do Ministério Público quando este se refere à «procriação» (seja dentro ou fora do casamento) ou ao dever de «conservação da espécie» que veio defender que está cometido ao Estado,
que lhes pareceu aqui completamente fora de contexto,
pois que nos presentes autos não se falou nunca de filhos, de procriação, de filiação ou sequer de adopção,
já que nenhum casamento – seja ele heterossexual seja ele homossexual – poderá constituir uma espécie de «alvará» ou autorização incondicional para a adopção de crianças,
como o comprovam os recentes casos, que resultaram chocantemente mediáticos, de mortes de crianças depois de serem barbaramente torturadas, seviciadas e violadas, algumas até com escassos meses de vida, casos esses ocorridos no seio de famílias heterossexuais,
mas que não é só por serem heterossexuais que deixaram de ser obviamente disfuncionais e mais do que claramente inaptas à educação de crianças.

E, de seguida,
afirma ainda o Ministério Público o seguinte:
«Que à criação e educação dos filhos devem presidir um modelo masculino e feminino... de uma forma bem clara a transparente, sem equívocos ou ficções mais ou menos sofisticadas».

Ora,
esta afirmação, porque de grande responsabilidade e pelas consequências de que poderia revestir-se e pela influência muito precisa e bem concreta que é susceptível de adquirir, não deveria ter sido proferida, antes de ter sido fundamentada tecnicamente numa base antes de mais científica do foro psicólogo e pedo-psiquiátrico,
tanto mais que
elas são desprovidas de qualquer tipo de base técnica ou científica, e meramente fundamentadas numa opinião pessoal que, por muito respeitável ou bem intencionada que seja (o que se admite sem hesitação ou qualquer reserva), não deixa, ainda assim, de ser isso mesmo: uma opinião pessoal.

É, também por isso,
que as Recorrentes não podem deixar de aqui manifestar a sua discordância com a afirmação do Ministério Público, quando este se refere a «equívocos» ou «ficções», sejam elas ou não «mais ou menos sofisticadas»,
isto é, quando decide apreciar e emitir juízos de valor,
ou, se quisermos ser mais exactos,
emitir juízos de DESVALOR, mais ainda sendo os mesmos injustificados e, como é óbvio, infundamentados cientificamente,
sobre cidadãos ou determinados grupos de cidadãos do seu país.
Não podem as Recorrentes, de facto, concordar com esta posição.

Mais ainda,
quanto é certo que, por muito que se entenda não «conceder» o direito de ser considerado como «uma família» a um determinado casal homossexual, ainda assim,
e mesmo que tal extravase o âmbito dos presentes autos, onde se trata e discute a juridicidade e constitucionalidade de um simples contrato civil,
diga-se ainda que, tal como há muito está cientificamente demonstrado, qualquer criança, ainda que criada numa família homossexual, conhecerá e saberá sempre distinguir as diferença entre um homem e uma mulher,
pois receberá sempre as referências de masculinidade e feminilidade que precisa e que lhe são conaturais, dos mesmos sítios e de onde, é óbvio, todas as demais crianças as recebem, seja na sua própria casa, seja entre os amigos, nos vizinhos, na televisão, no cinema, em livros, na escola,
enfim, e numa palavra, na... sociedade.

Porque atenção:
se for entendido defender rigorosamente e à letra
«que à criação e educação dos filhos devem presidir um modelo masculino e feminino... de uma forma bem clara a transparente, sem equívocos ou ficções mais ou menos sofisticadas,
e que tal afirmação significa que todas as crianças deverão ser educadas e crescer num lar de onde tais referências só poderão vir de um casal heterossexual, sob pena de que qualquer criança que seja educada e criada no seio de uma família homossexual seja «transformada» também ela em homossexual,
então,
não só correremos o risco de ouvirmos dizer que, como é por demais óbvio, todos os homossexuais provêm de relacionamentos heterossexuais,
como, e muito principalmente,
correremos o risco de ainda vermos defender o absurdo de que num caso, por exemplo, em que um casal (heterossexual) que tem, digamos, dois filhos, mas que, de repente, vê o marido e pai morto tragicamente num acidente de viação, e deixa a mulher, agora viúva, sozinha som os seus dois filhos,
terá de ver a sua situação como que «reavaliada» por uma autoridade estatal já que aquelas crianças deixaram de ser criadas e educadas sob a «presidência» de um modelo masculino e feminino, pois agora só lhes resta a mãe,
e, portanto, deixaram de aprender «a unidade e a diversidade, a interdependência e a independência, a exclusividade e a complementaridade dos dois sexos, de uma forma bem clara e transparente...»,
pelo que não restará outro remédio que não «retirar» estes filhos à sua mãe, agora viúva, para que sejam «colocados» numa qualquer instituição de beneficência à espera de serem adoptados por um «verdadeiro casal», com homem e mulher e tudo.
Seria, de facto, um completo absurdo.

Numa palavra,
não podem as Recorrentes conformar-se com qualquer tipo de afirmação que defenda que determinados negócios jurídicos, ainda que de natureza exclusivamente civil, que umas pessoas pretendem celebrar têm de estar sujeitos à «sensibilidade religiosa» de outras pessoas,
ou até que
o Estado «não pode, pois, tratar da mesma forma os casais heterossexuais e os casais homossexuais».
Porque, não só pode, como, muito mais do que isso, deve tratá-los precisamente de forma exactamente igual.
Quem o diz não é senão a Constituição da República Portuguesa que no seu artigo 13º determina inequivocamente que fica vedada qualquer forma de tratamento diferenciado em função da orientação sexual das pessoas.
Ou ainda ouvir dizer que
«O princípio constitucional da igualdade pressupõe que deve ser tratado diferentemente o que é diferente, e igualmente o que é igual».

Ora,
sem prejuízo do que mais adiante a este aspecto nos referiremos e melhor se fundamentará, impõe-se desde já que fique claro que
na língua portuguesa «tratar de forma diferente» significa, com todas as letras, discriminar.
Porque «discriminar» ou «tratar de forma diferente o que é diferente» qualquer que seja o motivo a desculpa ou a «razão», ainda que em consequência da orientação sexual deste ou daquele cidadão, será sempre mas sempre uma só coisa: discriminar.
(Mas, como dissemos, mais adiante voltaremos a este assunto ao qual, então nos referiremos mais detalhadamente).

Finalmente,
Constatamos ainda da parte do Ministério Público esta afirmação:
«Não é verdade que onde a Constituição diz (art.º 36º n.º 1) que todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade, pretende abranger nesta plenitude os casamentos homossexuais...».
Contudo,
e por estranho que pareça,
e por isso têm as Recorrentes de manifestar a sua discordância quanto ao que é dito, de facto,
é precisamente isso que diz o n.º 1 do artigo 36º da Constituição quando claramente estipula que
«todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade».

De facto, e em primeiro lugar,
sublinhe-se que da formulação da norma do n.º 1 do artigo 36º da Constituição consta inequivocamente a palavra «todos»,
sendo, por isso, completamente infundamentada e claramente injustificada qualquer leitura dessa mesma norma de que resulte uma interpretação idêntica à que resultaria se, em vez da palavra «todos», nela estivesse inscrita a expressão...
«só alguns têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade».

Até por que, e constitui até uma verdade axiomática,
a afirmação de que a Constituição deve ser lida, interpretada e integrada no conjunto coerente de todas as suas normas e disposições,
e não, como é óbvio, interpretada depois de uma leitura isolada e descontextualizada deste ou daquele artigo.
Ora,
se da norma do n.º 1 do artigo 36 da Constituição consta, sem que tal afirmação seja sequer contestável, a palavra «todos»,
e sem que ali exista qualquer elemento de onde resulte a mais longínqua possibilidade de que qualquer intérprete venha a pensar que, onde está essa palavra «todos», o legislador quis afinal significar qualquer outra coisa como «só alguns»,
então,
deverá essa mesma palavra ser lida e interpretada de acordo precisamente com o seu rigoroso e preciso significado na língua portuguesa,
e também, ao mesmo tempo, de acordo com a sua integração técnico-jurídica no todo coerente da Constituição,
nomeadamente de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 13º da Constituição, que é precisamente a norma integradora do verdadeiro significado da palavra «todos»,
e que a formulação e a forma como foi inscrita no texto da norma, de facto, não pode conter «excepções».
Pois,
qualquer interpretação que pudesse ser feita nesse sentido só poderia resultar objectivamente de uma prévia «selecção» de casos,
de que resultasse a inclusão de uns e a exclusão de outros,
isto é, que resultasse de uma «diferenciação» que o intérprete delas fizesse, ou seja, e por outras palavras, resultaria de uma discriminação prévia que o intérprete já lhes tivesse feito,
sem que, por ironia, tivesse sequer ficado explícito a quem compete “legitimidade” para definir e, depois, implementar os critérios de tal «selecção».
Ora,
e não obstante, como se disse já, ser o n.º 2 do artigo 13º da Constituição que constitui precisamente a norma integradora que nos servirá para, de forma global e coerente,
ainda assim,
podemos ler nas alegações do Ministério Público que a prova inequívoca de que os casais homossexuais nem sequer têm direito a constituir família,
muito menos a contrair casamento,
está até, imagine-se, contida no mesmo e no próprio artigo 36º da Constituição, porque o seu n.º 3 determina que:
«os cônjuges têm iguais direitos e deveres quanto á manutenção e educação dos filhos...».

Contudo,
o que é verdade é que este raciocínio é tão inaceitável quanto isto:

Se os homossexuais não podem ter filhos
(descartando-se, sem se perceber bem porquê, a possibilidade de poderem tê-los tido com pessoas do sexo oposto, por exemplo num relacionamento heterossexual anterior ou até contemporâneo, ou poderem ainda tê-los através dos diferentes métodos de procriação medicamente assistida),
logo,
os homossexuais «não têm os mesmos direitos e deveres quanto à manutenção e educação dos filhos».
E então, aceitar-se este ilogismo, teria de concluir-se que, mau grado o que vem escrito no artigo 13º da Constituição, afinal os homossexuais podem ser discriminados,
obviamente em função e em razão da sua orientação sexual.
Seria, de facto, inaceitável.

Por outras palavras,
tão inaceitável como dizer que os homossexuais não podem constituir família, nem podem contrair casamento, porque... não podem ter filhos...,
tão ilógico como dizer que constitui prova técnico-jurídica desta asserção a própria formulação constitucional da «igualdade de direitos e deveres dos cônjuges no que aos filhos respeita»,
mas, acima de tudo,
tão inaceitável como defender que quem não pode ter filhos... não se pode casar!

Porque, se assim fosse e se assim se defendesse,
teria de também de encontrar-se inconstitucionalidade nos casamentos «in articulo mortis», com as óbvias consequências que desse facto necessariamente adviriam para a qualificação legitimária dos herdeiros,
como teria forçosamente de se defender também a simétrica inconstitucionalidade do casamento entre pessoas que não podem ter filhos, porque são estéreis, por exemplo (ou porque simplesmente optaram por não os ter), ou até do casamento de uma mulher após a sua menopausa,
ou até então,
num paradoxo tão gigantesco que as próprias alegações do Ministério Público parecem ter perdido a noção da sua verdadeira dimensão,
que, se um casal homossexual que viva em união de facto, como aliás acontece exactamente com as Recorrentes, não pode casar porque não pode ter filhos,
então,
bastaria que qualquer uma das Recorrentes, por exemplo a primeira Recorrente, fizesse não mais do que aquilo nos nossos tempos mais não é já do que uma solução rotineira e de inquestionável juridicidade,
recorresse a um «banco» de esperma e, depois de uma inseminação realizada por um qualquer método artificial que na ocasião lhe fosse medicamente aconselhado, e depois, como é natural, engravidasse,
verificando-se que, afinal já podia ter filhos,
para que então, como que automaticamente e nesse mesmo e preciso momento, adquirisse o direito a casar com a outra Recorrente.
(Isto para não falar das possibilidades hoje cientificamente comprovadas – mas que aqui, obviamente, se não invocam – da procriação por clonagem ou por simbiose genética artificialmente assistida de duas células sexuais, ambas femininas – porquanto se trata de práticas cuja ética ou até de razoabilidade eugénica ainda se encontram bem longe de estar demonstradas – e muito menos de aplicabilidade a seres humanos – mas que, ainda assim, de facto, existem).

Mas atenção:
que aqui se não defenda qualquer forma argumentativa que passe pela distinção entre o caso de um qualquer casal heterossexual e o caso das Recorrentes no exemplo acabado de dar, e que refira que aqui as Recorrentes não podem ter filhos «uma com a outra»,
sob pena de termos de voltar atrás para refazermos a consideração que acima deixámos sobre a constitucionalidade de um casamento heterossexual em que um dos cônjuges é estéril...


Ora,
é precisamente aqui que não resistimos a citar a impressiva opinião do Professor Júlio Machado Vaz,
para cuja totalidade remetemos para o documento que a final se junta (que aqui se não repete na íntegra por manifestas razões de economia processual, mas que se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).
Assim,
na sua «Declaração» (cujos sublinhados e destaques, que são feitos exclusivamente nesta citação, são exclusivamente nossos) o Professor Júlio Machado Vaz diz-nos o seguinte:

«O casamento foi sempre uma instituição baseada em interesses económicos, alianças familiares e, sobretudo, no que se convencionou apelidar de imperativo procriativo, sinónimo de projecção no futuro de nome e posses. (Como é óbvio, falo das classes dominantes, as mais desfavorecidas tinham muitos filhos e poucos bens para dividir, razão pela qual certos especialistas lhes atribuem o duvidoso privilégio de poderem casar por amor!).
«Na segunda metade do século XIX, com a progressiva hegemonia do conceito de Amor Romântico, o panorama começou a mudar. Dessa época datam expressões como “o homem/mulher da nossa vida”, “as almas gémeas”, “viveram felizes para sempre”.
«Pese embora a clara divisão entre esfera pública e privada, com a primeira proporcionando todas as liberdades aos homens e a segunda a ser imposta às mulheres respeitáveis, promovidas (?) a assexuadas fadas do lar, o casamento passava a ter como razão primeira o sentimento.

«Acresce o surgir de outras variáveis: o direito à felicidade individual; a maior importância dada ao ambiente afectivo familiar para o crescimento de futuros adultos psicologicamente saudáveis; o estilhaçar do binómio casamento/filhos, até aí granítico.

«Um século volvido, deparamo-nos com um casamento herdeiro da ideologia burguesa, ninho de poucos filhos e aspirando a uma felicidade que não se consubstancia na resistência da instituição às intempéries da vida, mas no equilíbrio bem sucedido entre duas liberdades.
«Dir-se-ia que a metáfora adequada já não é a de um só corpo e alma e sim a de duas pessoas olhando na mesma direcção durante o maior número de anos possível. Se o projecto falhar, cada uma procurará uma nova relação conseguida, num processo que os sociólogos apelidam de “monogamia seriada”.
«A mudança de um paradigma apoiado no imperativo procriativo para outro de partilha sentimental retira força ao argumento nuclear contra o casamento homossexual - se esquecermos os interditos religiosos -, que, de resto, é cada vez menos consensual entre os heterossexuais - ter filhos passou a ser uma (doce) hipótese a contemplar e não uma inevitabilidade, quase inerente à condição humana.
«O casamento de hoje é uma relação tentada entre duas pessoas, dois afectos, duas liberdades, dois projectos de vida, muitas vezes ensaiada previamente numa experiência de coabitação.

«E não a moldura, ainda que emocional, para dois aparelhos reprodutores…».

- Na verdade, inequivocamente esclarecedor.

Pois, de facto,
como poderíamos encontrar melhor argumento que deitasse por terra qualquer tentativa de invocação da capacidade procriativa de dois seres humanos unicamente como um inútil argumento para a firme, determinada e incompreensível persistência na recusa de lhes facultar não mais do que o acesso a uma simples formalização de natureza exclusivamente civil do seu projecto de vida em comum e da sua intenção de constituírem uma família,
tão somente através de um mero contrato que se encontra já tipificado na lei e que é já livre e perfeitamente acessível à generalidade dos cidadãos?
Porque,
é bem verdadeira a afirmação do Professor Júlio Machado Vaz, sendo irresistível não citar novamente os seus dois últimos parágrafos:
«O casamento de hoje é uma relação tentada entre duas pessoas, dois afectos, duas liberdades, dois projectos de vida, muitas vezes ensaiada previamente numa experiência de coabitação.
«E não a moldura, ainda que emocional, para dois aparelhos reprodutores…».


Não obstante,
as Recorrentes ainda viram o Tribunal de 1ª Instância considerar,
embora, convenhamos,
unicamente como mero argumento apriorístico,
que «quanto ao contrato de casamento existe um elemento fundamental e típico que permite qualificá-lo como tal: ser celebrado por duas pessoas de sexo diferente»
e dizer também que
«Trata-se aqui de um elemento de natureza imperativa para a caracterização do contrato. A heterossexualidade é uma característica essencial do contrato de casamento...»

Mas,
Tudo isto não que sem antes se considere que existe um «interesse público atinente à organização da vida familiar».

Ora, na verdade,
ninguém poderá negar tal interesse público, até por que, desde logo, ele se deduz da imperatividade da grande maioria das normas do «Direito da Família» e da indisponibilidade com que os cidadãos que recorrem àquele ramo do Direito são confrontados.

Contudo,
coisa bem diferente, como parece mais do que óbvio,
será considerar essa «imperatividade» civilística mais importante ou acima das normas constitucionais que a contradigam,
será considerar essa «indisponibilidade» como superior à àquela com que se depara o intérprete da Constituição, indisponibilidade essa que será até muito maior (passe a redundância) se estivermos perante normas que respeitem a Direitos, Liberdades e Garantias,
e será, finalmente, considerar esse «interesse público» como que “hierarquicamente superior” ao mesmo interesse público que, por simples e mera definição é constituído pelo coerente conjunto normativo que consubstancia a «Constituição da República Portuguesa».

Mas mais ainda:
por muito que, como o fez a 1ª Instância, se considere que «a heterossexualidade é uma característica essencial do contrato de casamento»,
porquanto isso resulta «de um elemento de natureza imperativa» para a caracterização do contrato de casamento,
e, tudo isto, porque já foi previamente invocado um «interesse público atinente à organização da vida familiar»,
ainda assim,
não poderá encontrar-se essa «natureza imperativa» e definir-se esse mesmo «interesse público» como sendo de valia superior às mesmas e precisas características definidoras que, como vimos, caracterizam a Constituição,
nem sequer até se pode interpretá-los de uma forma tão vasta e tão profunda, e como estando tão particularmente regulamentada que,
então,
seria forçoso deduzir-se que constitui intenção integradora e característica definidora da Ordem Jurídica portuguesa que o Estado pode (e até deveria) como que «entrar pela casa das pessoas adentro»
para então melhor determinar a sua composição familiar e, dentro desta, definir assim como que uma espécie de «conformidade com os ditames sexuais» que sejam «de interesse público»
e onde, então e pelos vistos, não caberia a homossexualidade.
Ora,
e como será inquestionável, isto seria absolutamente inadmissível.

Até por que,
quanto mais não fosse,
isso passaria a constituir argumentação bastante para que se pudesse considerar que os homossexuais não podem constituir família,
não obstante este próprio Tribunal Constitucional ter já deixado, e até por mais do que uma vez, bem esclarecido que isso não é verdade.
Mas, apesar disso,
o que é facto é que é essa consideração com que deparamos na sentença proferida em sede de 1ª Instância...
E,
quando tal asserção se confronta com o texto constitucional,
nomeadamente com a precisa e inequívoca forma como está redigido o artigo 13º da Constituição,
que contém uma claríssima proibição de qualquer forma de discriminação dos cidadãos – incluindo, obviamente, a discriminação em função da sua orientação sexual,
o que é facto é que a sentença parece fazer uma clara «opção» pelas normas do Código Civil,
num paradoxal exercício de «adaptação» da Constituição às normas definidoras do Direito da Família,
só porque, mais atrás, já se tinham deixado encontradas as características «imperativas» e de «interesse público» daquele ramo do Direito.

No entanto,
o que é certo é que se esperaria antes de qualquer intérprete da lei que valorasse a Constituição (nem que fosse de uma forma simples e meramente hierárquica) bem acima do Código Civil
para, então, interpretar as normas civilísticas de acordo com a sua conformidade constitucional,
ainda que essas mesmas normas civilísticas se revistam de «grande imperatividade» e até «do maior interesse público possível».
Pois, de facto,
não é sequer simplesmente considerável qualquer forma de interpretação da Constituição que seja feita de forma a «caber» dentro das formulações do Código Civil,
por muito que se considere, como é feito na sentença da 1ª Instância, que na Ordem Jurídica portuguesa está cometido ao Estado «um papel determinador das relações familiares»,
incluindo, pelo que vemos, a própria orientação sexual dos cidadãos,
a qual se deveria, então, como que «inspeccionar» previamente
antes de se saber e determinar se esta ou aquela pessoa «têm o direito» de... constituir família.

Por outras palavras ainda,
o que se constata é que a sentença da 1ª Instância faz uma interpretação inadmissível, até porque paradoxal,
de que as normas do Direito de Família contidas no Código Civil estão dotadas – todas elas – de uma natureza indelevelmente «imperativa» e até «inderrogável» de uma forma inapelavelmente “estanque”,
mesmo até por vontade das partes,
de tal forma que
foi ali decidido considerar essa «imperatividade» e essa «inderrogabilidade» da lei civil como «ainda mais imperativa» e «ainda mais inderrogável» que as determinações constitucionais que as contradizem,
nomeadamente as que proíbem qualquer forma de discriminação em razão da orientação sexual dos cidadãos.
Ora,
terá provavelmente sido por força desse raciocínio,
do qual, como é óbvio, veementemente se discorda,
que acabou por ser considerado na sentença que
«o Princípio da Igualdade não proíbe que o legislador faça “distinções”» desde que o faça «com fundamento material bastante» ou que o faça «segundo critérios de valor objectivos constitucionalmente relevantes».
Ou seja,
deparamos aqui, uma vez mais, com a defesa deste incrível paradoxo de que, afinal, será o próprio «Princípio da Igualdade»,
segundo o qual fica constitucionalmente vedada a discriminação entre os cidadãos, qualquer que seja a razão invocada,
que acaba por, ele próprio, «permitir» um tratamento diferenciado entre os próprios cidadãos,
desde que, diz-se... para tal haja, afinal, uma determinada «razão».

Mas mais:
ainda que se afirme na sentença que «a razão» ou «fundamento» para essa distinção deve ser feita segundo critérios de valor que sejam objectivos e também «constitucionalmente relevantes»
(o que já por si constitui uma afirmação de «elevado risco»,
principalmente se estivermos dentro do capítulo dos «Direitos, Liberdades e Garantias»), o que é facto é que não encontramos em parte alguma da sentença claramente identificado um só que seja desses critérios tais objectivos «constitucionalmente relevantes»,
mas antes,
somente encontramos atribuída relevância a critérios mera e unicamente de natureza... exclusivamente civil,
cuja «relevância», «imperatividade» e «interesse público» resultam não da Constituição mas tão somente, e afinal, dessa própria lei civil.
E, se quisermos ser ainda mais claros,
sempre se diga que na língua portuguesa uma «distinção» ou um «tratamento diferenciado» que é feito entre cidadãos,
não passa de um mero eufemismo para a palavra «discriminação».
Assim,
e se, sem eufemismos ou sinónimos «politicamente correctos», quisermos dar às palavras da riquíssima língua portuguesa o seu devido valor,
o que constatamos é que na sentença proferida na 1ª Instância vemos defendido que é a própria norma constitucional que prevê a proibição de qualquer forma de discriminação quem, afinal e bem vistas as coisas, permite... essa mesma discriminação.

Ora,
provavelmente com o objectivo de uma integração mais «defendida» desta posição, a sentença da 1ª Instância apela à opinião de Gomes Canotilho e Vital Moreira e que, embora não enquadre especificamente na valoração inversa que faz da hierarquia normativa da Constituição e do Código Civil,
acaba por secundar citando aqueles constitucionalistas a dizer que «a proibição de discriminações não significa uma exigência de igualdade absoluta em todas as situações, nem proíbe diferenciações de tratamento».
Ora,
o que é facto é que a afirmação daqueles ilustres constitucionalistas tem de ser interpretada de forma correcta (e legalmente constitucional)
e não da forma contraditória e paradoxal
que resultaria da afirmação de que, por exemplo, «a proibição constitucional da discriminação não impede que se façam discriminações».

Porque, e como é óbvio, impede.
Pois
(e como adiante melhor se explicará),
de facto, a proibição de discriminações só não significará uma «exigência de igualdade absoluta em TODAS as situações»,
e só não significará uma proibição cega e absoluta de TODAS as «diferenciações de tratamento»,
se – e somente nesse caso –
essa distinção, ou melhor, essa discriminação estiver a ser feita num sentido ou numa formulação claramente... POSITIVA.

Mas mais:
mesmo que, por mera hipótese académica se admitisse, com o carácter de generalidade com que Gomes Canotilho e Vital Moreira são citados na sentença (o que provavelmente nem sequer é por aqueles autores pretendido),
isto é, que a redacção do artigo 13º da Constituição ao estabelecer uma proibição de discriminações não quer significar que se esteja a exigir «uma igualdade absoluta em todas as situações»,
ainda assim, dizíamos,
isso não quereria necessariamente dizer exactamente que
uma dessas particulares situações
em que não seria exigível essa tal «igualdade absoluta»,
acabasse por constituir precisamente logo uma das situações mais precisas e concretas explicitamente previstas
e expressamente proibidas no próprio texto Constitucional,
como é exactamente o caso da proibição da discriminação em função da orientação sexual.

Por outras palavras,
se Gomes Canotilho e Vital Moreira (e também, aliás, Jorge Miranda e Rui Medeiros) defendem que a formulação do «Princípio da Igualdade», tal como consta do artigo 13º da Constituição, não está de forma alguma feita de uma forma tão genérica, tão geral e tão abstracta
que nos «force» a interpretar «cegamente» todas e quaisquer situações, por mais abstrusas que nos pareçam, de forma «rigorosamente igual»,
ainda assim, e mesmo que aceitássemos a doutrina daqueles constitucionalistas exactamente tal como ela é assim citada,
até por que essa opinião é também doutrinalmente feita, claro, de forma geral e abstracta,
ainda assim, dizíamos,
isso não significaria que «de repente» tivéssemos ficado «autorizada» a incluir nessa «exclusão»,
logo precisamente uma das situações precisas e «concretas»,
designadamente a proibição da discriminação em razão da «orientação sexual»,
que é exactamente um dos casos que o próprio legislador constitucional, no meio da sua enumeração meramente exemplificativa, decidiu incluir expressamente no texto do artigo 13º da Constituição,
exactamente – temos forçosamente de o concluir –
e para que ficasse absolutamente inequívoco,
que o intérprete da Lei Constitucional não está autorizado a excluir tal situação – porque agora inquestionavelmente definida e concretizada – da intenção e da “ratio” da norma constitucional.

Tanto assim que, recorde-se,
Que a expressão «ou orientação sexual» consta agora do texto do n.º 2 do artigo 13º da Constituição somente porque foi aditada pela Lei Constitucional n.º 1/2004 a uma redacção original que, claro está, não a incluía,
obviamente com a intenção de que ficasse bem expresso e claro que da redacção anterior poderiam gerar-se interpretações equívocas,
e que, assim, e com tal aditamento, o legislador constitucional quis deixar bem claro que queria que fossem afastadas.

Numa palavra,
se quisermos interpretar a norma do artigo 13º da Constituição como estando feita de forma a permitir e a «abrir a porta» a determinados casos «de excepção», em que seria constitucionalmente admissível e aceitável uma determinada forma de discriminação,
ainda assim,
seria completamente inaceitável que qualquer intérprete passasse a estar autorizado a incluir num desses «determinados casos de excepção» precisamente uma das situações que o próprio texto constitucional deixou bem claro e inequívoco que não pretendia que, por qualquer forma, alguma vez pudesse vir a constituir uma dessas excepções.

Por outro lado,
vem ainda mencionado na sentença da 1ª Instância, a propósito da integração deste caso no âmbito da previsão do artigo 36º da Constituição,
norma que, sob a epígrafe «Família, Casamento e Filiação», garante a todos os cidadãos, logo no seu nº 1, o direito «de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade»,
que também desta formulação constitucional se deduz uma proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo,
já que, se o n.º 1 daquela disposição a todos garante o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade»,
o seu n.º 2 esclarece que
«A lei regula os requisitos e os efeitos do casamento e da sua dissolução por morte ou divórcio, independentemente da forma da sua celebração».

Então,
e secundando a opinião de Gomes Canotilho, a sentença afirma que daquelas normas se conclui que,
e em primeiro lugar,
que a Constituição admite «diversas formas de celebração» de casamento,
mas também, e em segundo lugar,
afirma que a Constituição já não admite «diferentes tipos» de casamento ou sequer de casamentos de «natureza diferente».

Ora,
o que é facto, desde já se diga, é que não se vislumbra no texto constitucional onde poderá constar ou de onde poderá deduzir-se tal proibição de «diferentes tipos» de casamento ou mesmo de casamentos de «natureza diferente»,
ou sequer
em que medida é que, com interesse para este caso, se encontram resultantes concretas e práticas entre as expressões «diferentes tipos de casamento» ou «casamentos de natureza diferente»,
e muito menos que, de alguma diferença que se encontre, por isso, se possa desde logo concluir uma proibição do casamento homossexual.
Até por que, de facto,
poderia muito bem a Constituição não prever expressamente o casamento homossexual,
sem que imediatamente isso significasse que, nem mesmo sequer implicitamente, o estivesse... a proibir.
Pois,
muito pelo contrário,
se foi admitido que a Constituição permite, isso sim, «diversas formas de celebração» de casamento, então, e como é óbvio,
isso significará não só que a Constituição desde logo reconhece que o casamento pode revestir diversas «formas» (pelo menos mais do que uma),
como significa que, ao contrário do que diz Gomes Canotilho, daqui poderá deduzir-se antes que
a Constituição, afinal, não só permite expressamente uma primeira forma de casamento: precisamente «uma forma de casamento heterossexual»,
como também,
permite ainda uma segunda forma de celebração de casamento: precisamente «uma forma de casamento homossexual».

Aliás,
o que faz não mais do que em obediência e até em absoluta e rigorosa coerência com o disposto na fórmula «em condições de plena igualdade» contida logo no n.º 1 do mesmo artigo 36º
e em obediência ainda ao estabelecido no n.º 2 do artigo 13º, que afirma que tais «condições de igualdade» só existirão, só serão concebíveis se não forem feitas quaisquer formas de discriminações,
nem sequer, por isso, formas de discriminações em razão da «orientação sexual» daqueles que se pretendem casar.

Mas,
ainda assim,
a sentença conclui que «as uniões homossexuais» estão fora daquilo a que chama «o programa normativo directo» da lei constitucional,
muito embora não tenha referido, mas devia tê-lo feito,
se, ao invés, foi possível encontrar nalguma parte dessa mesma lei constitucional alguma forma de proibição expressa ou sequer implícita de que «as uniões homossexuais» fossem incluídas nesse mesmo «programa normativo directo» da Constituição,
mesmo até que «à última hora» se encontrem designações para o «casamento homossexual» como sendo um casamento de «diferente tipo» ou de «natureza diferente»,
mas que, como se disse, nem mesmo assim se vislumbra onde possam eles estar proibidos em alguma parte da Constituição.

A não ser, então,
que se esteja a defender que existem outras formas de proibição de acesso à celebração do contrato civil de casamento a outros cidadãos,
igualmente com recurso ao mesmo argumento de que se trataria, também, de casamentos de «diferente tipo» ou de «natureza diferente».
Mas,
que seria tão inconcebível, tão absurdo, tão repulsivo e até tão revoltante, que aqui só por meras razões de argumentação, que fique claro, se refere.
Seria, então o caso, por exemplo, do casamento de uma pessoa deficiente ou até o próprio casamento inter-racial.
Pois,
não será que correríamos o risco de, com base nesta mesma argumentação, ainda encontrarmos alguém a defender a proibição do casamento entre cidadãos de raças diferentes, tão somente porquanto eles seriam uma forma de casamento de «diferente tipo» ou de «natureza diferente»?...
Ora,
bem sabemos que não é isso que aqui está em causa,
até por que, e como é óbvio,
num Estado de Direito não seria tolerável essa inqualificável forma aberrante e desumana de discriminação entre os cidadãos.
Até por que, e como é também óbvio,
essa forma de discriminação está bem clara e inequivocamente proibida no n.º 2 do artigo 13º da Constituição, que estabelece o «Princípio da Igualdade» entre todos os cidadãos.
Mas que é, aliás, precisamente o mesmo artigo que, com base na formulação desse mesmo «Princípio da Igualdade» proíbe que essa discriminação se faça também em razão da... «orientação sexual»...

Mas, ainda assim,
a sentença prossegue, ainda citando Gomes Canotilho, dizendo ainda a propósito das «uniões homossexuais»:
«Seguramente que basta o princípio do Estado de direito democrático e o principio da liberdade e autonomia pessoal que lhe vai naturalmente associado para garantir o direito individual de cada pessoa a estabelecer vida em comum com qualquer parceiro da sua escolha.
«Mas uma coisa e a protecção ao nível da liberdade e da autonomia individual, outra coisa é o seu reconhecimento e garantia específica a título de direito à constituição de família e celebração de casamento».

Ora,
se como diz Gomes Canotilho, é felizmente bem verdade que em Portugal, enquanto Estado de direito democrático, está perfeitamente garantida aos cidadãos «o direito individual de cada pessoa a estabelecer vida em comum com qualquer parceiro da sua escolha»,
seja ou não esse parceiro do mesmo sexo,
já muita coisa haverá a dizer sobre a segunda parte da afirmação daquele ilustre constitucionalista.

De facto,
mesmo já sem encontrar na correspondência nem na lei (que o reconhece expressamente em inúmeras normas, civis e penais)
e sem já encontrar apoio na jurisprudência do Tribunal Constitucional,
que já há muito reconheceu, por exemplo, que em caso de morte o companheiro sobrevivo tem direito à pensão de sobrevivência tanto numa união de facto heterossexual como numa união de facto homossexual,
ainda assim,
Gomes Canotilho, de quem a sentença se fasta em parte,
afirma que uma coisa é a «liberdade ou a autonomia individual»,
outra coisa é «o seu reconhecimento e garantia específica a título de direito à constituição de família e celebração de casamento».
Ora,
antes de mais, esta afirmação nem sequer reconhece o direito aos homossexuais a sequer chamarem «família» a uma união pessoal em que vivam um projecto de comunhão de vida pessoal, patrimonial, afectiva ou sentimental,
mas até, até principalmente neste caso específico, por nem sequer, e de uma forma, digamos, tão crua, reconhecer a essa «família homossexual» (mesmo que assim não lhe chame) a contrair casamento,
simplesmente porque «já lhes basta» e com isso terão, pois, «de se contentar» com as garantias que o Estado de direito democrático lhes concede para «estabelecerem vida em comum com qualquer parceiro da sua escolha».

Ou seja,
enquanto uma família heterossexual poderá sempre vivenciar a sua vida em comum escolhendo livremente a forma de o fazer, isto é, escolhendo livremente entre casar ou viver em união de facto,
para Gomes Canotilho a família homossexual somente poderá vivenciar esse projecto comum «optando» unicamente por viver em união de facto.

Mas,
o que é aqui profundamente chocante, como acima se afirmou,
não são já para Gomes Canotilho, razões de juridicidade constitucional (ou sequer civil), mas agora simples razões «práticas» e «mundanas»,
que entendeu deixar como resolvidas para os homossexuais,
e que são baseadas precisamente nessa afirmação (que infelizmente no nosso país tantas vezes se encontra proferida) de que para os homossexuais... «já lhes basta a união de facto»,
e de que os homossexuais «não precisam do casamento para nada», porque a união de facto nada de novo lhes traz a mais do que o casamento lhes poderia vir a trazer.
Ora,

é do desconhecimento da realidade prática de um país, principalmente quando se trata da VIDA dos cidadãos ou até de um determinado grupo de cidadãos, que resulta precisamente tão chocante a interpretação de uma lei de que poderá resultar uma influência ou uma determinação concreta, num sentido ou noutro, para essa própria VIDA.

E é exactamente o que aqui neste momento se verifica no que concerne ao tema da «União de Facto Homossexual»,
muito mais até porque, como verificaremos, essa influência se estende a TODOS os cidadãos, independentemente da sua orientação sexual,
pese embora o facto de que numa união de facto heterossexual haverá sempre, em qualquer altura a oportunidade da opção pelo casamento,
o que,
como vimos se trata de um «privilégio» que não está ao alcance das uniões de facto, isto é, das famílias homossexuais.

Assim,
E como uma imagem vale mil palavras, pensam as Requerentes que, melhor do que qualquer desenvolvimento argumentativo, melhor será o relato de uma história, infelizmente bem vulgar, a que, por motivos óbvios se mudaram os nomes e as possibilidades de identificação concreta,
e que agora as Recorrentes, com a devida vénia, solicitam a deferência desse Tribunal Constitucional para que seja contada.
É esta a história:


«O Manuel é um alto quadro de um banco aposentado.
O Joaquim é um antigo funcionário judicial, também já aposentado.
São os dois homossexuais. Viveram juntos quase 50 anos.
Viviam numa casa comprada por ambos com um empréstimo hipotecário, embora a casa estivesse somente em nome do Manuel que, como bancário, tinha melhores condições de crédito. E depois, há quase meio século que banco daria um crédito conjunto a uma família homossexual?
O recheio e os equipamentos da casa, várias vezes renovados ao longo das décadas, tinham sido comprados por ambos.
Nesse quase meio século viveram em união de facto, em perfeita economia comum, numa amizade, num companheirismo e numa vivência de amor sincero, bem invejável para quem os conhecia.
O Joaquim já tinha sido casado.
Casara por volta dos vinte anos, mas o casamento não tinha durado nem sequer um ano. A firme resolução de assumir a sua homossexualidade, tinha-o levado ao divórcio.
Depois conhecera o Manuel...

Não tinha sobrado qualquer rancor à sua ex-mulher. Tinha até permanecido uma certa amizade.
Mas o que é facto é que ela já tinha casado outra vez, tinha-se mudado para outra cidade e não se viam há quase 40 anos.

Já aposentados os dois, o Manuel e o Joaquim tinham uma vida próspera e desafogada que as duas reformas em conjunto lhes proporcionavam, principalmente a reforma do Manuel, muito superior à do Joaquim.
Como o empréstimo da casa estava já pago - pela economia comum de ambos - há muitos anos até se podiam dar ao luxo de fazerem regularmente alguns cruzeiros por esse mundo fora.
Numa palavra: eram felizes!

Mas ao fim de quase meio século de vida em comum, de uma existência partilhada em tudo, o Manuel morreu subitamente!
Morreu sem deixar testamento.
Tinham muitas vezes falado em fazerem testamento um ao outro. Mas também sempre tinham pensado os dois que «ainda havia tempo para isso»...
A única família do Manuel eram dois sobrinhos que viviam no Norte e que, ao longo dos anos, sempre se haviam recusado sequer a pronunciar o nome do tio.
Nem sequer foram ao seu funeral, tal era o autêntico desprezo que sentiam por ele.
Mas, com desprezo ou não, foi no próprio dia do funeral, já à noite, que foram a casa do seu tio Manuel.
A primeira coisa que fizerem foi correr com o Joaquim de casa para fora. Então não eram eles os únicos e universais herdeiros do falecido dono da casa?
Perante a resistência que o Joaquim ofereceu, ainda o agrediram selvaticamente e puseram-no fora de casa com a roupa que tinha no corpo. Estava frio e nem um casaco lhe deixaram ir buscar.

O Joaquim foi logo à polícia.
Mas, o que é facto é que nada havia a fazer.
Os sobrinhos eram os únicos herdeiros do Manuel e a casa era agora deles.
Quanto às agressões, que testemunhas havia?

Nessa noite o Joaquim dormiu nas escadas do prédio...
Tinha 76 anos, e a meio da noite, deitado no chão gelado de um vão de escada, acabara de descobrir que não tinha nada de seu.
Restava-lhe, felizmente, a sua pensão de funcionário judicial aposentado há muitos anos, mas que nem sequer lhe dava para comprar outra casa.
Que banco lhe ia emprestar dinheiro com aquela idade?
Daí a uns dias, por intermédio de uns amigos comuns, lá conseguiu que os sobrinhos do Manuel, num gesto de “magnânima boa vontade”, lhe devolvessem alguma da sua própria roupa.
Nunca mais viu os discos ou os livros. Nunca mais viu um relógio de estimação que era de seu pai.
Nem sequer as fotografias, que recordavam toda uma vida.
Disseram-lhe depois que os sobrinhos as tinham queimado.

Vive agora sozinho num miserável quarto alugado, e gasta na renda quase metade da sua pensão de aposentação.

O meio século, todos aqueles anos em que viveu em união de facto – em FAMÍLIA – com o Manuel, de nada lhe valeram.
Os sobrinhos já venderam a casa e regressaram ao Norte com o dinheiro que o tio que desprezavam lhes deixara em herança.
O Joaquim não é herdeiro do Manuel, claro.

Quando a habilitar-se à sua pensão de aposentação, ainda o poderia fazer. Mesmo vivendo em união de facto homossexual, tinha esse direito, foi o que lhe disseram.
Mas para obter a pensão, informaram-no, tinha que contratar um advogado e levar o assunto para Tribunal.
Tinha de intentar uma acção judicial onde tinha de demonstrar duas coisas: que necessitava desse dinheiro para viver e ainda que nenhuma das pessoas de que fala o artigo 2009º do Código Civil lhe podia, mesmo ainda antes do Estado, dar-lhe alimentos.
Mas, logo no princípio, aquele tal artigo 2009º fala no cônjuge ou ex-cônjuge. Mas como poderia ele ter coragem, como poderia cometer a autêntica indignidade de pedir judicialmente alimentos à sua ex-mulher, que nem sequer via há quatro décadas?
Tinha também um irmão. Mas mais ninguém.
Mas como poderia ele ir ter com o irmão?

Como poderia abeirar-se dele, falar-lhe sequer, se da última vez que o tinha visto, há já 10 anos no funeral de um dos sobrinhos que tinha morrido num acidente de automóvel, o seu irmão o tinha insultado em pleno velório, o tinha autenticamente achincalhado em público gritando-lhe os mesmos insultos, sempre os mesmos insultos, que sempre e tantas, tantas vezes, ouvira ao longo da sua vida?

Como poderia sequer pensar em ir ter com o irmão que o tinha posto fora do velório do seu próprio sobrinho, não sem antes o ter esbofeteado violentamente, deixando-lhe ali em público muito bem explicado que aquilo era «por causa da lata de ter ido ali» e que nunca mais o queria ver na vida e que «não o considerava seu irmão»?
Que falta de dignidade, que mais despudorada falta de ética seriam necessárias para sequer pensar em pedir alimentos ao irmão?

Tinha direito à pensão de sobrevivência do seu companheiro de quase cinquenta anos, mesmo que tivesse vivido com ele em união de facto homossexual, tal como lhe tinham dito?

Não: afinal não tinha.

E é esta a história...
Em suma,

não obstante, como foi dito, estarmos perante uma determinação constitucional aparentemente tão clara como inequívoca,
ainda assim,
e uma vez que na sentença proferida em 1ª Instância, se admitiu expressamente que (ao contrário, diga-se em abono da verdade, do que lemos nas alegações do Ministério Público ou do que defende Gomes Canotilho) que as uniões de facto homossexuais são também uma forma de constituir família,
e outra coisa, aliás, não poderia ser considerada, à luz da determinação da norma do artigo 36º da Constituição, que garante a todos os cidadãos
– e pelos vistos também aos cidadãos homossexuais –
o direito a constituir família,
e até a fazê-lo em condições de plena igualdade,
até porque essas tais «condições de plena igualdade» assim vêm determinadas no artigo 13º da Constituição que, uma vez mais, não admitiria qualquer forma de discriminação em razão precisamente da orientação sexual,
então,
e pelas mesmíssimas razões e argumentos,
deveria ter-se igualmente considerado que essa garantia constitucional do direito a constituir família em condições de plena igualdade
é precisamente igual à garantia constitucional do direito a contrair casamento, nas mesmas e precisas condições de «plena igualdade».

Tanto mais que
essas duas garantias, que obviamente não se confundem uma com a outra e se referem a situações e realidades bem distintas,
estão ambas, ainda assim, quer uma quer outra, constitucionalmente previstas sem qualquer distinção entre elas,
e tanto mais ainda que tais «condições de igualdade» são formuladas de forma idêntica e, também por isso,
devem ser, ambas, integradas na previsão do artigo 13º da Constituição, designadamente na igualdade dos cidadãos face à sua orientação sexual,
e estão até escritas e consignadas, repare-se, na mesma frase.
Ora,
o que é facto é que, não obstante esta claríssima consagração constitucional, a sentença da 1ª Instância decide em sentido precisamente oposto,
sem que tenha sido dada qualquer fundamentação ou explicação – tal como lhe era, aliás, legalmente exigido que fosse feito –
para aquela discrepância de valorações entre duas determinações constitucionais clara e expressamente previstas no mesmo artigo, no mesmo número desse artigo, e até na mesma frase desse número.
Porque, de facto, essa discrepância é obviamente injustificável.

Contudo,
e ainda a propósito da tese defendida por Gomes Canotilho, e que sentença cita, de que «o direito à constituição de família ou de celebração de casamento» são realidades bem distintas das garantias constitucionais de liberdade ou da autonomia individual,
sempre ainda se diga que, de facto, se trata de coisas bem diferentes.
Contudo,
o que é também verdade é que o facto de serem consideradas «coisas diferentes» não poderá deixar de considerar-se uma argumento inequivocamente inválido para que, então, elas não sejam ambas garantidas,
tal como, aliás, tão clara e inequivocamente assim o determina a Constituição da República Portuguesa.

Mas mais,
como acima já se admitiu, é bem claro que a sentença da 1ª instância discorda notoriamente de Gomes Canotilho quando este nem sequer admite que os homossexuais tenham o direito a constituir família.
De facto,
é perfeitamente perceptível como a sentença se demarca de tal tese, admitindo perfeitamente que os homossexuais podem constituir família.
Outra coisa não poderia defender-se, claro,
porque assim o estabelece o n.º 1 do artigo 36º da Constituição.

Mas,
ali se esclarece, família sim, mas... «somente» em união de facto.
Só que,
acontece que, uma vez mais,
se se admite como certo que é naquela norma constitucional que se encontra feita a garantia de que os homossexuais têm o inegável direito de constituir família em condições de plena igualdade,
então,
o que é certo é que na sentença acaba por ficar por explicar por que motivo é feita uma valoração que desta é tão distinta, logo que se começa a falar de «casamento homossexual»,
quando é certo que é precisamente na mesma norma que se encontra igualmente feita a garantia de que os homossexuais têm o inegável direito a contrair casamento, também em condições de plena igualdade?

Então,
não é um facto indesmentível que ambos aqueles direitos são concedidos «em condições de plena igualdade» e ambos mereceram a mesmíssima previsão e consagração constitucional e, como vimos, até na mesma frase?
Pois,
na verdade, este paradoxo acaba por ficar por explicar na sentença proferida na 1ª instância,
sendo até maior o paradoxo quanto é até patente que a tese que se defende na sentença,
isto é, que das duas realidades previstas no artigo 36º – a família e o casamento – somente uma delas pode ser concedida aos homossexuais,
acaba por se suportar e fundamentar precisamente nos mesmos e precisos argumentos de uma opinião doutrinária que as recusa a ambas!
Nem sequer se pode ser considerar que tal fundamentação se encontre quando, já perto do final, a sentença acaba por admitir programática e quase «profeticamente» que
«apesar de a sociedade estar em constante mudança e de haver necessidade do Direito acompanhar essa mudança, é certo que em alguns sistemas jurídicos ocidentais, tal como o nosso, ainda vigora a norma que define o casamento como um contrato celebrado entre um homem e uma mulher...»

Pois, de facto, é verdade: tal norma efectivamente «ainda» vigora.
Vigora no artigo 1.577º do Código Civil e nas demais normas de natureza civil que lhe dão correspondência.

Mas, no entanto, não devia vigorar.

Ora,
é precisamente porque tal norma «ainda vigora» que as Recorrentes aqui estão, nestes autos, a procurar que isso deixe imediatamente de suceder.

Vigora, mas não devia vigorar,
precisamente porquanto vigora num desses tais «sistemas jurídicos» que a sentença refere, e como é exactamente o caso do português,
mas em que vigoram também, e simultaneamente, determinações constitucionais que impedem precisamente essa vigência,

e a ferem irremediavelmente de inconstitucionalidade!

Era isso pois, que deveria ter sido decidido logo na 1ª instância,
e que não foi, apesar de ter aqui de se reconhecer que a sentença acabou, apesar de tudo, por ter «percorrido praticamente todo o caminho» que a tal decisão deveria, por isso, ter inexoravelmente ter conduzido...
Depois,

e face a esta decisão proferida em 1ª instância, com a qual obviamente não podiam de forma alguma concordar,
as Recorrentes dela interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.

Mas,
infelizmente, e uma vez mais, não foi ainda no Tribunal da Relação de Lisboa, que as Recorrentes conseguiram fazer valer os seus direitos,
sempre e uma vez mais, como então explicaram nas suas alegações de recurso, alicerçadas na inconstitucionalidade das normas do Código Civil (e de todas as restantes normas que lhes dão correspondência ou que lhes sucedem) e cuja invocação tem persistentemente impedido o seu processo de casamento.

De facto,
e embora em grande parte as fundamentações do acórdão do Tribunal da Relação coincidam, de facto, com as considerações expendidas pelo Tribunal de 1.ª instância, sobre as quais as Recorrentes já acima deixaram as razões da sua discordância
pelo que aqui, e por manifestas questões de economia processual, se torna desnecessário repeti-las, antes bastando aqui dá-las todas por reproduzidas,
ainda assim,
e como primeira referência ao quanto foi decidido no sempre douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa,
não podem as recorrentes deixar de referir a afirmação de que
«... um dos campos em que existem restrições na liberdade de contratar é exactamente o campo do Direito da Família, área em que predominam normas imperativas e inderrogáveis por vontade das partes, resultando tal circunstância do interesse público atinente à organização da vida familiar».

Ora,
e uma vez mais,

também o acórdão do Tribunal da Relação não deixa explicado e suficientemente fundamentado em que medida e que critérios entendeu utilizar para definir os limites dessa «imperatividade» e dessa «inderrogabilidade»,
e até mesmo a «força» jurídica que caracteriza essas características,
tanto mais até que, se no Direito da Família predominam normas imperativas e inderrogáveis,
isso também quer dizer que, afinal, nem todas as normas que compõem tal ramo de direito são imperativas e inderrogáveis,
e também onde, em que norma jurídica e em que princípio do Direito, se encontram tais características estabelecidas,
de tal forma que, aparentemente elas aparecem dotadas de superior «imperatividade» e de uma maior «inderrogabilidade», mesmo até quando comparadas ou em confronto com as próprias normas constitucionais.
Ou seja,
o que é patente é que tendo sido colocado numa situação de nítido e visível confronto entre as mesmas características de «imperatividade» e de «inderrogabilidade», agora das determinações feitas em sede de «Direitos, Liberdades e Garantias» preconizadas e estabelecidas na Constituição Portuguesa,
e face a essas mesmas características de «imperatividade» e de «inderrogabilidade», mas desta vez constantes do Código Civil, mais exactamente no Livro do «Direito da Família»,
o que acabamos por constatar é que o acórdão do Tribunal da Relação escolheu como sendo o «mais forte»... o Direito da Família.
O que é, obviamente, inaceitável.
Com efeito,
posto perante a alegação das Recorrentes que, com o indeferimento do seu processo de casamento, até o seu próprio direito, civilmente estabelecido e consagrado, à «liberdade contratual» estava a ser grosseiramente violado,
o acórdão do Tribunal da Relação começou por considerar, primeiro (e muito bem) que a liberdade de contratar pode, sim, ser «condicionada»,
obviamente, e explicado-se logo melhor, desde que esse mesmo condicionamento seja feito “dentro dos limites da lei”.
Mas, para depois, à laia de fundamentação desta posição, explicar que uma restrição ou determinado condicionamento à liberdade de celebrar um simples contrato civil de casamento unicamente a pessoas de sexo diferente não constitui uma violação ao princípio da liberdade contratual,
Porque, afinal,... a liberdade contratual pode ser... condicionada.
Só que, desta vez,
nesta paradoxal explicação é notório que foi completamente esquecido aquilo que o próprio acórdão do Tribunal da Relação começou por dizer:
- Que esse condicionamento está sujeito aos limites da lei.
Ora,
neste caso específico, isto é, neste caso em que tratamos de um mero e simples contrato de natureza exclusivamente civil, como o é o contrato de casamento, cujo acesso, como vimos, está a ser injustificadamente limitado e restringido unicamente a um certo e determinado conjunto de cidadãos,
e cujo acesso, correspondentemente, está a ser privilegiado a um outro certo e determinado conjunto de cidadãos,
separados, estes últimos dos primeiros, por uma espécie de «Muro de Berlim» que os impede de alcançar uma simples igualdade de direitos,
por força de uma discriminação em razão da sua orientação sexual,
o que é facto é que
tal como muito bem se diz no acórdão do Tribunal da Relação,
esses limites da lei ao condicionamento à liberdade contratual, de facto existem.
São, precisamente, os limites da Lei Constitucional.

Assim,
o que é verdade é que os limites que, de facto, existem ao condicionamento à liberdade contratual não foram encontrados nas características de «imperatividade» ou de «inderrogabilidade» do Direito da Família,
mas, outrossim, é nítido foram buscados somente em razão da diferença entre os diferentes cidadãos que foi encontrada na sua orientação sexual.
Ora,
isto é inadmissível.
Mais exactamente, constitucionalmente inadmissível.
Prova disso,
é o próprio facto de que as ora Recorrentes, duas mulheres, duas cidadãs de pleno direito, no perfeito e integral gozo das suas personalidade e capacidades jurídica e judiciária, gozando, por isso, de plena capacidade matrimonial,
vivendo uma com a outra em plena comunhão de vida e em família,
uma família que existe já, de facto, e que há muito já constituíram,
uma família cuja protecção lhes está constitucionalmente garantida,
aliás na mesma norma constitucional que lhes garante, a cada uma delas individualmente, o direito a contraírem casamento,
mas que é um direito que, afinal, estão a ser impedidas de concretizar e de exercer, pois não lhes é permitido formalizar contratualmente através de um casamento essa comunhão de vida, esse projecto comum de vida familiar,
para então acederem ao conjunto de direitos e obrigações, e aos vínculos mútuos, patrimoniais e pessoais, que desse contrato legalmente decorrem,
somente porque o querem fazer – uma com a outra,
obviamente porque são homossexuais,
e porque, enfim, é essa a sua... «orientação sexual».

Por outras palavras,
está a ser vedado a cada uma das Recorrentes o acesso à celebração de um determinado contrato de natureza mera e exclusivamente civil,
unicamente por força da sua orientação sexual.

Ora,
isto acontece somente porque uma expressão contida no artigo 1.577º do Código Civil, estas três simples palavras «de sexo diferente», assim o estabelece,
e estabelece de forma obviamente inconstitucional porque essa limitação de acesso decorre não mais do que de uma discriminação em razão da sua orientação sexual.

Ou seja,
era essa inconstitucionalidade (entre outras) que as Recorrentes esperavam que fosse decretada no acórdão do Tribunal da Relação,
para então contraírem casamento uma com a outra.

Já que, como vimos, e se logo em primeiro lugar,
é na própria Constituição que vem garantido a TODOS os cidadãos o direito a contrair casamento, isto é a «contratar um casamento»,
é então por demais inequívoco que, se alguma vez forem invocados «limites a essa liberdade de contratar»,
então terá de ser na própria Constituição – e não em qualquer outro diploma legal – que tais limites deverão ser então encontrados.

Deste modo,
e sendo inequívoco que o casamento deverá ser encarado tão somente como um «negócio jurídico» como qualquer outro.

É o quanto nos ensinou Mota Pinto (in Teoria Geral do Direito Civil):
«O negócio jurídico é uma manifestação do princípio da autonomia da vontade ou princípio da autonomia privada, subjacente a todo o direito privado, e consiste no poder reconhecido aos particulares de auto-regulamentação dos seus interesses, de auto-governo da sua esfera jurídica.
«Significa tal princípio que os particulares podem, no domínio da sua convivência com os outros sujeitos jurídico-privados, estabelecer a ordenação das respectivas relações jurídicas».
Ou ainda:
«Segundo o princípio da liberdade contratual a ninguém podem ser impostos contratos contra a sua vontade... nem a ninguém pode ser imposta a abstenção de contratar».

No mesmo sentido,
Antunes Varela (in Das Obrigações em Geral)
que definiu «contrato» como «o acordo vinculativo, assente sobre duas ou mais declarações de vontade, substancialmente distintas mas correspondentes, que visam estabelecer uma regulamentação unitária de interesses contrapostos mas harmónicos entre si»,
constituindo, por conseguinte, «não só fonte de obrigações, mas de direitos reais, familiares e sucessórios».
E também:
«O contrato não é apenas uma expressão da autonomia da vontade individual nas zonas de interesses vitais dominadas pelo direito;
«é também um instrumento de cooperação entre as pessoas, no plano dos valores que o direito é chamado a servir».
Por isso mesmo,
o princípio da liberdade contratual é estabelecido na nossa Ordem Jurídica para que a Lei «seja continuamente chamada a colaborar com a vontade das partes na disciplina da relação contratual».

Ora, e pelo que vimos,
sendo embora um contrato de natureza civil, e com efeitos exclusivamente civis como qualquer outro, o casamento é um contrato típico que mereceu da lei civil portuguesa uma regulamentação especial.

De facto,
o casamento é um contrato que tem um duplo efeito para aqueles que o celebram quando «pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida»,
aliás em absoluta igualdade de direitos e deveres daqueles que o celebram (cfr. nº 1 do artigo 1.671º do Código Civil),
pois, para além das suas óbvias consequências patrimoniais, que se reflectem de forma tão diversa como são distintos os regimes de bens que podem ser adoptados pelos contratantes,
o casamento, dizíamos, enquanto «fonte de relações jurídicas familiares» por imposição do artigo 1.576º do Código Civil,
tem também consequências não menos importantes de ordem não-patrimonial, por força da peculiar obrigação do cumprimento dos deveres conjugais de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência, mutuamente impostos e garantidos a ambos os contraentes (cfr. artº 1.672º do C. Civil).
É por isso que,
como é óbvio, a disciplina jurídica dos contratos, com o contrato de casamento dentre eles, não se esgota com o conjunto de normas que compõem o Código Civil Português.
Na verdade,
e mesmo até antes de qualquer apreciação dessas normas, haverá que, em primeiro lugar, procurar definir a nossa Ordem Jurídica tal qual ela é programaticamente preconizada pela Constituição da República Portuguesa.

É que, e uma vez mais citando Mota Pinto (ob. cit)
«A Constituição contém, na verdade, uma “força geradora” de direito privado.
«As suas normas não são meras directivas programáticas, de carácter indicativo, mas normas vinculativas que devem ser acatadas pelo legislador, pelo juiz e demais órgãos estaduais».
Assim,
«Estão desprovidas de validade jurídica as disposições legais ordinárias que infrinjam o disposto na Constituição ou ofendam os princípios nela consignados».
E também:
«Os direitos, liberdades e garantias individuais dos cidadãos reconhecidos pela Constituição... são protegidos juridicamente também nas relações entre particulares.
«Tais princípios impõem-se à vontade dos sujeitos jurídico-privados nas suas convenções».
Em suma,
encontrada a definição civilística e a natureza jurídica do contrato de casamento, e analisada a ordem jurídica que, de um ponto de vista exclusivamente civil, é composta pelas normas que regulamentam tal tipo de contrato,
deveria o acórdão do Tribunal da Relação ter também analisado, antes de mais, a conformidade constitucional de tal conjunto de normas, isto é, da ordem jurídica civil que define o casamento enquanto contrato de natureza exclusivamente civil que é.
Mas não o fez.
Ao invés,
o acórdão do Tribunal da Relação que citou diversas passagens das obras quer de Gomes Canotilho e Vital Moreira, quer de Jorge Miranda e Rui Medeiros, deixou por fundamentar as asserções e conclusões a que chegou mas que nas passagens citadas acabam por não ser encontradas.
Pois que,
tais citações acabam por se revelar feitas de forma tão inexplicada quanto até acrítica, que são até referidas passagens de onde talvez se devessem ter retirado conclusões favoráveis às Recorrentes...



Ora,
é precisamente neste preciso ponto destas alegações que, sem qualquer sombra de dúvida se impõe uma particular e muito significativa referência à opinião do Dr. Pedro Múrias,
que vem expressa no «Parecer» para cuja totalidade remetemos expressamente para o documento que a final se junta (e que, não obstante a sua relevância, só não se repete agora na íntegra por manifestas razões de economia processual, mas que aqui, ainda assim, se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).

Assim,
no seu «Parecer» que intitula «Um símbolo como bem juridicamente protegido» – cujos sublinhados e destaques (que são feitos exclusivamente nesta citação e não no texto original junto a estas alegações ) são exclusivamente nossos - o Dr. Pedro Múrias começa por dizer-nos o seguinte:

«O problema, tam­bém jurí­dico, do casamento entre pessoas do mesmo sexo não se reduz à opção de atribuir ou não atribuir certas pretensões de direito privado ou público a certas pessoas...
Contudo,
«seria encobrir o problema não olharmos mais fundo, não olharmos para a intensidade das dimensões simbólicas, emocionais e descritivas, de auto­‑identificação e de identificação perante os outros, que o casamento tem».

Depois,
em capítulo do seu parecer que destaca sob a designação de «O bem jurí­dico do casamento e as normas violadas pela sua recusa», Pedro Múrias, começa por referir-se ao «bem jurídico simbólico» que o casamento constitui, para então nos dizer que
«o problema da cons­ti­tu­cio­na­li­dade do casamento entre pessoas do mesmo sexo não se reduz à opção de atribuir ou não certos direitos e deveres a certas pessoas.
«O fundo do problema, que na ver­dade gera o calor do debate público, é um dado tipo de reconhecimento e de legitimação, que passa pela admissibilidade de certa lin­gua­gem. A lin­gua­gem não é neutra, e ainda menos em direito, do que decorrem, aliás, exigências do «moral­mente correcto» e do «juri­di­ca­mente correcto», para parafrasear o slogan ambivalente do «poli­ti­ca­mente correcto».
Pois, se virmos bem,
«a própria Cons­ti­tui­ção proíbe «designações discriminatórias» (cf. art. 36.º, n.º 4), e a punição da injúria (cf. art. 181.º CP) exprime uma tradição ancestral do reconhe­ci­mento jurídico do peso das palavras, para lá da relevância de actos de lin­gua­gem promissivos e directivos como a maioria dos contratos e das leis.
Assim,
«não se defende, agora, que os casais homossexuais tenham direitos e deveres diminuídos por comparação com os heterossexuais, embora talvez se lhes recuse ainda o automatismo de uma aqui­si­ção em conjunto num acto só, que não deixa de ter relevância muito significativa. O último reduto da tese oposta às exigên­cias dos homossexuais é uni­ca­mente que estes casais não se identifiquem como pessoas casadas ou, numa derradeira subtileza, como pro­pria­mente casadas. A luta pelas palavras não é cons­ti­tu­cio­nal­mente neutra, pois as palavras não são juri­di­ca­mente neutras.
(...)
«O casamento, como contrato, não se reduz aos deveres indicados no art. 1672.º, e muito menos à tota­li­dade dos subefeitos conferidos pelas leis mais variadas, dos direitos suces­sórios aos impe­di­mentos de titulares de cargos públicos, passando por benefícios e malefícios fiscais.
«Estes epifenómenos jurí­dicos são muito contingentes, ao sabor da pena do legislador, e os deveres condensados no art. 1672.º (...) tam­bém não esgotam o estado de casado. O «vínculo matrimonial» subsiste na separação judicial de pessoas e bens, quando só se mantém o «dever» de não cometer adultério.
«Pelo con­trá­rio, levar demasiado a sério a impe­ra­ti­vi­dade dos deveres conjugais, salvo para efeitos de divórcio litigioso e correspondentes res­pon­sa­bi­li­dades, gera soluções contra­‑intuitivas e que autorizam invasões na esfera íntima de cons­ti­tu­cio­na­li­dade mais do que duvidosa. A redução deôntica do casamento é, pois, insu­fi­ciente.

Deste modo,
«Falta o aspecto a que, não nos ocorrendo termo mais adequado, podemos chamar «simbólico».
«Contra o que supõem as teses imperativistas ou «deonticistas», a lei e as entidades legal­mente habilitadas não estabelecem apenas direitos, deveres e poderes, conferem tam­bém quali­dades simbólicas. Trata­‑se de figuras que, para lá dos direitos e deveres que nalguns casos as acompanham, valem pelo seu reconheci­mento social e pelas reacções sociais posi­tivas, nega­tivas ou de mera identificação que tipica­mente desencadeiam.
«O Estado tem o poder, por vezes exclusivo, de atribuir estes bens simbó­licos. Não faltam exemplos. Os «símbolos nacionais» (cf. art. 11.º CRP) são­‑no sem que a sua criação envolva quaisquer permissões ou deveres. Todos compreendemos o que são o hino e a bandeira nacionais, que não reduzimos a uma sua possível tutela protocolar ou penal. As condecorações que o Presidente da República confere (cf. art. 134.º, al. i), CRP) tam­bém não se analisam em quaisquer deveres e direitos. As muitíssimas regras de com­pe­tên­cia quanto à atri­buição de louvores ou repreensões são plena­mente jurídicas.

Ora,
«a figura da união de facto não é um menos em relação ao casamento apenas por produzir efeitos jurí­dicos diferenciados. A sua limitação verbal ao campo do facto, que não do direito, é uma diminuição em si mesma.
«A aparente frivolidade destes exemplos desaparece quando a dis­tri­bui­ção de qualifica­tivos com valor simbólico é confrontada com prin­cí­pios cons­ti­tu­cio­nais mais importantes.

De facto,
«Em resposta a um pedido de esclarecimento sobre se, dado o seu juízo de incons­ti­tu­cio­na­li­dade sobre a proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo, seria sufi­ci­ente um sistema de «uniões civis» com direitos e deveres iguais aos do casamento, o Tri­bu­nal Supremo do Massa­chu­setts, entendeu que
«the history of our nation has demonstrated that separate is seldom, if ever, equal».

«O problema, na ver­dade, não é específico do seu país.
«Dworkin põe o problema na unicidade das ins­ti­tu­i­ções, que vivem da lin­gua­gem, sustentando a admissibilidade jurídica e política do casamento homossexual pela impos­si­bi­li­dade de, de um momento para o outro, criar uma forma de compromisso entre duas pessoas com a mesma «intensidade de significado».
Com efeito,
«o esta­tuto simbólico do casamento identifica­‑se através de uma lin­gua­gem própria, que inclui os termos que designam o acto ou a relação («casamento», «matrimónio», etc.),
«os que qualificam as pessoas em função disso («casado», «solteiro», «viúvo», «divorciado», «marido», «mulher», «cunhado», «sogro», «primeira dama», etc.),
«a apli­ca­bi­li­dade aos casados de termos mais amplos com forte valor cultural («família», «afinidade»)
«e as formas nega­tivas ou mera­mente «técnicas» próprias de relações exteriores ou con­trá­rias ao casamento («união de facto», «adultério», «bigamia», «amante», «concubino», «mancebia», etc.).

Ou seja:
«a lin­gua­gem posi­tiva própria do casamento participa de actos de reconhecimento pessoal.

Depois,
«a importância da lin­gua­gem para o casamento pode ainda confirmar­‑se através da negação do casamento que é um casamento simulado.
«A simulação é possível mesmo a pessoas que vivam em união de facto. O acordo simulatório significaria, para os concubinos, a recusa de se identi­fi­carem um perante o outro e social­mente como casados. O móbil de enganar um terceiro específico, nome­a­da­mente algum serviço burocrático do Estado, completaria os requisitos da simulação.

Uma vez mais,
«o casamento, na sua importância incontestável, não deixa de viver sempre e só através de palavras.

Na verdade,
sublinhe­‑se ainda
«a importância do amor e a sua relação com o casamento na cultura dominante, visível não só em clichés como «casaram e viveram felizes para sempre» ou na oposição entre «casar por amor» e «um casamento de conveniência», mas tam­bém pela relação entre a duração possível do casamento, até à morte de um dos cônjuges, e o valor posi­tivo atribuído ao «amor eterno».
«Sublinhe­‑se igual­mente a importância da legitimação social conferida pelo casamento ao sexo e ao amor erótico.

Mais,
«o esta­tuto simbólico do casamento está ainda associado à sua liber­dade de celebração, embora dependente da presença de certos oficiais. A essencialidade da liber­dade dos nubentes para o casamento é reconhecida em muitos passos legais, desde logo pela sua qualificação como contrato.
Numa palavra,

«esta asso­cia­ção simbólica atribuída pelo Estado, com a sua lin­gua­gem própria, é um bem jurí­dico.
«Dadas as carac­te­rís­ticas desta ins­ti­tui­ção — como de outras — uma figura com os mesmos efeitos jurí­dicos do casamento e com forma de cons­ti­tui­ção e extinção idênticas, mas com nome diferente, seria uma figura jurídica distinta, atribuiria um bem jurí­dico diverso.
«Se a lei concedesse aos casais de pessoas do mesmo sexo o acesso a tal figura jurídica, mas não ao casamento, ainda estaria a negar a esses casais um bem jurí­dico de grande relevância.

Pois,
«Um casal de pessoas do mesmo sexo pode pretender a cons­ti­tui­ção da relação simbólica de casamento, num exercício de liber­dade idêntico ao de um casal de pessoas de sexo diferente.
«Um casal que queira casar pretende a sua inclusão formal no âmbito de aplicação da lin­gua­gem própria do casamento e pretende, com isso, o acesso às repre­sen­ta­ções e às expectativas sociais típicas do casamento, as repre­sen­ta­ções e expectativas de amor, compromisso, família e cons­ti­tui­ção de família, publi­ci­dade, oficialização, exclu­si­vi­dade, coabitação, eco­no­mia comum.

Ora,
«o esta­tuto social global correspondente a estas repre­sen­ta­ções não pode ser obtido senão pelo casamento.
De seguida,
Pedro Múrias refere-se no seu «Parecer» à questão – que tornaremos a abordar mais à frente, e noutra perspectiva nestas alegações – à vertente da «igualdade» na argumentação subjacente ao tema do casamento homossexual, começando por dizer-nos que
«...nada impede que uma relação entre pessoas do mesmo sexo seja, em si mesma e à vista de todos, amor eterno, compromisso inquebrável, família e cons­ti­tui­ção de família, exclu­si­vi­dade sexual e amorosa, coabitação e eco­no­mia comum.

Ora,
«são conhecidas as afirmações pretensa­mente empíricas sobre a impos­si­bi­li­dade de algum ou de todos estes qualificativos nas relações entre pessoas do mesmo sexo, mas, nos dias que correm e com a informação facilmente disponível que temos, a ignorância ou má fé assim manifestada não pode ser aceite numa argu­men­ta­ção jurídica.
Noutro casos,
«alega­‑se querer tratar como «desigual o que é desigual» com uma mera afirmação de evidência da desi­gual­dade.
Mas,
«Aí, só podemos perguntar: desigual em quê?

De facto,
«O caso específico da negação da possi­bi­li­dade da «cons­ti­tui­ção de família» numa relação homossexual assenta na redução errónea da «cons­ti­tui­ção de família» à geração em comum de filhos e, mais importante, na redução errónea da relação entre pais e filhos à dádiva dos gâmetas sexuais geradores de uma gravidez.
Contudo,
«mesmo o legalismo mais acérrimo teria de negar estas concepções, em face das regras da filiação, do estabelecimento da filiação e da adopção.
«Numa perspectiva de direitos fun­da­men­tais, é ainda necessário verificar o facto das frequentes situações de homopa­rentalidade (para usar um termo das ciências sociais), que existem estavel­mente na nossa socie­dade como em qual­quer socie­dade contemporânea não demasiado repressiva. (...)

Em suma,
«não havendo fun­da­mento visível para distinguir as relações homossexuais das heteros­sexuais, as normas da lei ordinária que reservam o casamento para casais heterossexuais violam os arts. 13.º, n.ºs 1 e 2, e 36.º, n.º 1, da Cons­ti­tui­ção».
De seguida,
e prosseguindo ainda na sua doutrina, Pedro Múrias demonstra-nos como o casamento é «um bem de perso­na­li­dade» e como o a importância do casamento «é a ligação indissociável deste, na cultura que temos, aos factores emocionais decisivos que referimos.
Por isso mesmo,
«a limitação do acesso ao casamento é a supressão de uma possi­bi­li­dade de sucesso emocional. A proibição do casamento homossexual viola, pois, o direito ao livre desenvolvimento da perso­na­li­dade e o art. 26.º, n.º 1, da Cons­ti­tui­ção.
Finalmente,
mas que, ainda assim, também, será muito provavelmente uma das particularidades de maior importância e de mais primordial consequência a que daremos relevo nestas alegações,
(e embora mais à frente, e a outros propósitos, nos tornemos ainda novamente a referir à doutrina de Pedro Múrias, citando-a, pela sua relevância, de um modo, admitimos, irresistivelmente profuso),
é precisamente, nesta particular passagem da análise do tema do casamento homossexual, a que se refere ao tema da «Proporcionalidade».

Vejamos pois:
«O direito ao casamento é um direito, liber­dade e garantia e não pode ser restringido ou, muito menos, suprimido, senão na medida necessária para salvaguardar outros direitos ou interesses cons­ti­tu­cio­nal­mente protegidos (cf. art. 18.º, n.º 3, CRP).
«Ainda que assim não fosse, o prin­cí­pio do estado de direito (cf. art. 2.º CRP) impõe, como é consensual, que haja um fun­da­mento racional mínimo para a supressão de qual­quer bem cons­ti­tu­cio­nal­mente relevante.
Ora,
«não se consegue divisar qual­quer motivo atendível para negar a um casal de pessoas do mesmo sexo o acesso ao bem jurí­dico do casamento.

De facto,
«não se imagina razão para privar os casais do mesmo sexo da lin­gua­gem posi­tiva e das associações típicas do casamento.
«Não se vê justificação para recusar aos casais homossexuais este símbolo de grande relevância social.

Pelo con­trá­rio,
«a restrição do casamento a pessoas de sexo diferente, tal como decorre das normas do Código Civil, só é compreensível como discriminação explícita destinada a promover uma modali­dade de exclusão.

Ainda assim,
«e apesar de o ónus argu­men­ta­tivo estar com a posição oposta, negamos ainda algumas falácias que poderiam ser invocadas:

De facto,
«A atribuição do casamento aos casais homossexuais não altera o valor simbólico nem os deveres e obri­ga­ções dos cônjuges heterossexuais.

Pois,
«nem em Espanha, nem nos restantes países houve qual­quer alte­ra­ção do sentido do casamento com o seu alargamento a gays e lésbicas. Dada a diferença entre conceitos e concepções e dada, afinal, a defi­ni­ção aceitável de casa­mento, a ins­ti­tui­ção em nada muda pela inclusão dos casais do mesmo sexo.

Ou seja,
«é falacioso pensar que este bem simbólico não pode ser atribuído aos homossexuais porque, ao sê­‑lo, perderia a simbologia.
Muito pelo con­trá­rio,
«a simbologia mantém­‑se em absoluto, e é por isso que os homos­sexuais pretendem o casamento,
sendo agora inequívoco que
«a atribuição do casamento aos casais do mesmo sexo não contende com nenhuma função que se quisesse ver associada à ins­ti­tui­ção do matrimónio.

Na verdade,
«ainda que se pensasse que a figura legal do casamento se destinaria a promover o relacionamento estável entre os proge­ni­tores biológicos e com as suas crianças, o casamento homossexual em nada prejudica essa função rela­ti­va­mente aos casais com filhos biológicos.
«Nome­a­da­mente, o facto de um dos cônjuges do mesmo sexo ter um filho biológico, em nada afecta a posição do outro progenitor biológico rela­ti­va­mente à criança.

Depois
«e para eliminar possíveis argu­men­tos, diga­‑se ainda que o casamento de homossexuais não acarreta para o Estado quaisquer custos financeiros.
«Mesmo que estes existissem, aliás, não satisfariam o requisito da proporcionalidade em relação à proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo.
«Dada a informação científica e as determinantes nor­ma­tivas disponíveis, não há lugar para qual­quer liber­dade de decisão do legislador quanto ao casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Com efeito,
«a proibição do casamento homossexual viola, pois, o PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE em sentido próprio, tal como resulta do prin­cí­pio do estado de direito democrático, constante do art. 2.º da Cons­ti­tui­ção,
«e a sua versão específica da exigência de fun­da­mento cons­ti­tu­cio­nal para quaisquer restrições de direitos, liber­dades e garantias, ex vi art. 18.º, n.º 3, da Cons­ti­tui­ção.


Pois bem.
Aqui chegados,
e já dotados dos ensinamentos da doutrina que deixámos citada, voltemos agora novamente à leitura crítica especificada e mais concretizada do, sempre muito douto, diga-se, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa,
onde agora poderemos constatar (na sua página 9) nova chamada à doutrina de Gomes Canotilho e Vital Moreira que, quanto ao «Princípio Constitucional da Igualdade», nos dizem
que tal princípio consiste na proclamação da idêntica «validade cívica» de todos os cidadãos,
e que tal princípio não disciplina só as relações entre os cidadãos e o Estado, mas também regras de estatuto social dos cidadãos e princípios de conformação social e de qualificação da posição de cada cidadão na colectividade.
Ora,
sem embargo daquilo a que inequivocamente se refere a própria doutrina, mais exactamente Pedro Múrias, que agora acabámos de citar,
e sem prejuízo ainda do que, quanto a este propósito ainda mais à frente voltaremos a dizer,
desde já se diga que, vistas bem as coisas, é precisamente isto e são exactamente estes argumentos de proclamação da idêntica «validade cívica» a que as Recorrentes têm vindo a referir-se e invocar, quer na Conservatória, primeiro, quer nos Tribunais, depois,
e que, vêm sendo persistentemente usados contra si próprias.

Mas mais:
o acórdão da Relação, citando ainda Gomes Canotilho e Vital Moreira, acaba por como eles concordar que o Princípio da Igualdade significa:
- a proibição do arbítrio;
- a proibição de discriminação – explicitando-se como não legítimas quaisquer diferenciações de tratamento entre os cidadãos baseadas em categorias meramente subjectivas ou em razão dessas categorias – e fazendo-se referência ao nº 2 do art.º 13º a quem se atribui a virtude de mencionar expressamente algumas das categorias que historicamente fundamentaram discriminações,
e onde está expressamente incluída, como sabemos, a orientação sexual dos cidadãos;
- e, finalmente, a obrigação de diferenciação, como forma de compensar a desigualdade de oportunidades, o que pressupõe a eliminação, pelos poderes públicos, de desigualdades fácticas da natureza social, económica e social.

Ora,
é precisamente isto o que as Recorrentes vêm dizendo.
Como acima foi referido (e mais à frente ainda se repetirá), de facto, a proibição de discriminações só não significará uma «exigência de igualdade absoluta em todas as situações»,
e só não significará essa tal «obrigação de diferenciação» ou, também, uma proibição absoluta de «diferenciações de tratamento»,
ou, como se usa agora e tantas vezes se ouve dizer, passar a ser terminantemente proibido «tratar de forma diferente aquilo que é diferente»,
se – mas somente nesse caso – essa distinção, essa discriminação estiver a ser feita num sentido ou numa formulação exclusivamente positiva.

É precisamente isto,
e uma vez mais, o que as Recorrentes há tanto tempo defendem
e que incompreensivelmente não lhes é reconhecido,
não obstante serem-lhe reconhecidos como válidos e citados profusamente, ainda que provindos de outros, todos os seus próprios argumentos.

Mas o acórdão da Relação vai mais longe:

Cita ainda Gomes Canotilho e Vital Moreira a confirmarem explicitamente que o aditamento da expressão «ou orientação sexual» feito pela Lei Constitucional n.º 1/2004 ao texto original do n.º 2 do artigo 13º da Constituição, procurou obstar às discriminações directas ou indirectas baseadas neste critério,
ao «dar acolhimento a algumas reivindicações das chamadas minorias sexuais quanto ao direito à identidade sexual e quanto à proibição da privação de direitos por motivo de homossexualidade».
Mas,
não obstante esta claríssima formulação doutrinária,
o acórdão do Tribunal da Relação acaba depois por recorrer a Jorge Miranda e a Rui Medeiros para com estes, depois,
e contraditoriamente ao quanto já tinha deixado estabelecido,
acabar por com estes partilhar a ideia (visivelmente formulada por força de um argumento claramente pré-concebido), de que
«o fazer-se-lhe agora menção (à orientação sexual) no n.º 2 não equivale a mais do que a uma explicitação, sem que daí possa extrair-se alguma consequência quanto a outras matérias, designadamente quando ao casamento e à adopção».
Depois, e referindo-se primeiro ao Acórdão deste Tribunal Constitucional n.º 513/03 que já antes daquele “acrescento” ao n.º 2 do artigo 13º se havia pronunciado no sentido da violação do princípio da igualdade, por discriminação pela orientação sexual, relativamente ao direito a pensões por falecimento do companheiro de facto numa relação entre pessoas do mesmo sexo,
o acórdão do Tribunal da Relação acaba, depois, por partilhar com aqueles autores a inédita opinião de que uma determinada formulação constitucional não nos traz nada de novo.

Com efeito,

não podem as Recorrentes concordar com uma decisão judicial que, conhecedora óbvia da superior valia hierárquica das normas da Constituição em relação, por exemplo, às normas do Código Civil,
quando é posta perante uma contradição normativa entre disposições de ambos aqueles diplomas,
contradição essa que é muito mais explícita, agora, depois de um aditamento à redacção original do n.º 2 do artigo 13º da Constituição,
acaba por defender que uma determinada formulação constitucional é inútil e que, face à redacção original da norma, ela nada nos traz de novo e é até, por isso, completamente irrelevante.
Como não podem as Recorrentes concordar com uma decisão judicial que é tomada em função dessas considerações.

Mais ainda,
não podem as Recorrentes concordar com qualquer intérprete que considere inúteis ou irrelevantes esta ou aquela formulação constitucional,
muito mais se elas se referem a «Direitos, Liberdades e Garantias»,
e, neste caso, nem sequer que delas se faça tão somente uma mera e simples interpretação restritiva.

Até por que,
nem sequer este Tribunal Constitucional poderá permitir ou tolerar que esta posição acabe por fazer escola na jurisprudência portuguesa.
Caso contrário,
no futuro jurisprudencial português passaria a ser perfeitamente defensável que, até, de uma forma indeterminada, porquanto geral e abstracta,
tal como precisamente o é feito, aqui também neste caso, por Jorge Miranda e Rui Medeiros, secundados, depois no acórdão da Relação,
que um qualquer intérprete se ache «autorizado» a considerar como «derrogada» uma determinada norma constitucional
unicamente com base em critérios de oportunidade, de utilidade e de relevância que, primeiro, deixou feitas ao próprio legislador constitucional!
Não!
Seria, sem dúvida, o princípio do fim do Estado de Direito.

Mas mais:
a vingar tal posição, e como não podia deixar de ser, acabaríamos uma vez mais neste caso por deparar com este imenso paradoxo:
- é que, pelos vistos, o que acaba por servir de base de fundamentação à recusa judicial do casamento das Recorrentes é a própria formulação original do Princípio da Igualdade contida no n.º 2 do artigo 13º da Constituição, sem a inclusão da expressão «ou orientação sexual»,
e que ao mesmo tempo se considerou inútil e desnecessária.

Ora, e então,
se essa expressão é inútil e desnecessária na actual redacção da norma constitucional,
então não se entende por que motivo o Tribunal da Relação não reconheceu, com base nem que fosse na redacção original dessa norma, o direito das Recorrentes a não ser discriminadas – nem sequer por força de um impedimento matrimonial – em razão da sua orientação sexual.

Não é esse, afinal, o argumento?
Não está, afinal, como sempre esteve, constitucionalmente determinada a proibição da discriminação em razão da orientação sexual, sem necessidade de «acrescentos inúteis» às formulações constitucionais?

Depois,
e apesar ainda destas conclusões, o acórdão da Relação entra na consideração da pretensão das Recorrentes face ao artigo 36º da Constituição.

E então,
o acórdão do Tribunal da Relação começa por reconhecer, na esteira, agora, de Gomes Canotilho e Vital Moreira que, de facto,
«a Constituição não admite a redução do conceito de família à união conjugal baseada no casamento, isto é, à família “matrimonializada”»
e que, por isso, considera que estão incluídas nesse mesmo “conceito de família” «todas comunidades constitucionalmente protegidas»,
como sejam as famílias monoparentais, as comunidades de filhos nascidos fora do casamento, famílias formadas por irmãos ou irmãs, as uniões de facto e, até mesmo,
claro está, as uniões homossexuais.

Só que, mesmo depois de deixar esclarecido que partilha destas considerações, com as quais, evidentemente, não poderiam as Recorrentes deixar de concordar,
acontece que o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa reconhece ainda quatro coisas bem distintas:
- A primeira, é que está inequivocamente reconhecido na norma do art.º 36º da Constituição o direito a todos os cidadãos a constituir família em condições de plena igualdade;
- A segunda, é que está também inequivocamente reconhecido na mesma norma o direito a todos os cidadãos contraírem casamento, uma vez mais em condições de igualdade;
- A terceira, é que esses dois direitos – a constituir família e a contrair casamento – são dois direitos completamente distintos;
- A quarta, é que é obviamente reconhecido aos cidadãos homossexuais (como vimos) o direito constitucional a constituir família;

Mas depois,
e face à afirmação anteriormente feita de que aqueles dois direitos, garantidos ambos constitucionalmente a TODOS os cidadãos,
incluindo pois, aos cidadãos homossexuais,
e face à afirmação de que aqueles dois direitos não se confundem, citando-se até o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 411/03, que reconhece também que a família não é apenas produto do casamento,

esperar-se-ia que o acórdão do Tribunal da Relação viesse concluir, enfim, que ambos aqueles direitos,
porque, embora não se confundindo um com o outro,
estão ambos constitucionalmente garantidos a TODOS os cidadãos,
teriam, então, de lhes ser «concedidos» e «reconhecidos» os dois, sim, embora, enfim,... separadamente.
Mas não.
Por incrível que pareça,
o acórdão do Tribunal da Relação vem dizer-nos que, sendo embora direitos distintos,
e estando embora aqueles direitos ambos constitucionalmente garantidos a TODOS os cidadãos,
um desses direitos – e só um – não pode, afinal, ser concedido a um determinado grupo de cidadãos,
os quais têm que ser distinguidos e diferenciados dos demais,
isto é, têm de ser discriminados,
mais exactamente em razão da sua «orientação sexual»,
por muito que o artigo 36º garanta esse mesmo direito,
e por muito que o artigo 13º proíba tal discriminação.

Ora,
está bom de ver que esse mesmo direito, primeiro diferenciado dos demais direitos, e depois inequivocamente reconhecido a TODOS os cidadãos,
e que agora é subitamente denegado a um determinado conjunto de cidadãos, que se vêm incrivelmente discriminados em razão da sua «orientação sexual»,
é precisamente o direito a contrair casamento.

Mais ainda:
como que constituindo uma espécie de “fundamentação” ou de “defesa” desta indefensável teoria, o acórdão do Tribunal da Relação recorre uma vez mais às opiniões pré-determinadas de Jorge Miranda e de Rui Medeiros,
que agora vemos mesmo a defender que «o casamento não é garantido como uma realidade abstracta, completamente manipulável pelo legislador e susceptível de livre conformação pela lei».
«Pelo contrário, como é próprio de uma garantia institucional, não faz sentido que a Constituição conceda o direito a contrair casamento e, ao mesmo tempo, permita à lei ordinária suprimir ou desfigurar o seu núcleo essencial».

Ou seja,
defendem agora aqueles autores que, mesmo num Estado de Direito e subordinado ao primado da lei,
cujas normas derivam de um legislador (constitucionalmente legitimado para tal efeito) e cujos negócios jurídicos, e também cuja juridicidade de todos os demais inter-relacionamentos entre os diversos cidadãos decorre não mais do que de uma conformação da lei,
ainda assim, afinal,
ainda acima da lei está... a «Instituição do Casamento».

Só que,
ainda que se pretenda que o «casamento» seja definido como constituindo uma realidade a que se chama «instituição»,
ainda assim,
e mesmo que sob essa designação, o que é facto é que continuará garantida a TODOS a sua celebração «em condições de plena igualdade»,
pelo que as Recorrentes continuam sem se entender por que motivo se persiste em negar às Recorrentes o acesso a essa, então, «Instituição»,
e se persiste em discriminá-las em razão da sua orientação sexual.

De facto,
Não é admissível que um intérprete de uma norma constitucional decida, primeiro, chamar a um contrato de casamento «uma instituição»,
para, logo depois, discriminar intoleravelmente e vedar o acesso a essa «nova realidade» que agora, e de repente, já não é um contrato,
porque se transformou agora numa «instituição»,
a qual, por força agora desta «nova denominação», passou a ter o seu acesso vedado a um determinado conjunto de cidadãos,
cuja discriminação, de súbito, parece ter-se tornado legal, eticamente tolerável e, enfim, perfeitamente constitucional...

Ora,
se está constitucionalmente vedada a discriminação de cidadãos em razão da sua orientação sexual, onde se encontra então a justificação para que essa discriminação se torne de repente lícita, e assim perfeitamente aceitável, só porque ela se verifica «somente» no que se refere ao acesso desses cidadãos a uma... instituição?

Numa palavra,
trata-se aqui de uma posição absolutamente desconforme com a Constituição e até com a própria lógica jurídica e com a qual, por isso, as Recorrentes não podem de forma alguma concordar.
Mas mais:
vimos ainda que Jorge Miranda e Rui Medeiros, que uma vez mais parecem também aqui colher a aprovação do acórdão da Relação, defendem ainda que seria uma espécie de “impossibilidade lógica” que “não faria sentido” que a Constituição tivesse primeiro concedido o direito ao casamento,
«para depois permitir à lei ordinária suprimir ou desfigurar o seu núcleo essencial».

Ora, o que se constata em primeiro lugar,
é que fica por explicar em que medida é que tão somente por se permitir o acesso de cidadãos homossexuais a um determinado bem jurídico, deixando-se, então, de os discriminar pelo facto dessa sua orientação sexual,
daí resultaria um casamento «suprimido ou desfigurado no seu núcleo essencial...
É que, de facto,
no dia em que for permitido o acesso dos cidadãos homossexuais ao casamento, o que, sendo uma inevitabilidade histórica obviamente decorrente de uma normal evolução civilizacional, societária e democrática, se verificará mais cedo ou mais tarde,
e que por isso, as Recorrentes, na vivenciação do seu projecto de comunhão de vida e também de consolidação jurídica – e até mesmo social e económica – da família que constituem, esperam e anseiam lhes seja concedido por decisão, nestes próprios autos, deste Tribunal Constitucional,
ainda assim, dizíamos, no dia em que tal direito for finalmente reconhecido aos homossexuais,
sinceramente não se vislumbra qual a mínima diferença que poderá ocorrer, nessa ocasião, para os heterossexuais que se pretendam casar.
E também, muito sinceramente não se entende em que medida, nesse caso, é que os heterossexuais sairiam prejudicados, sequer minimizados ou mesmo «beliscados» nos seus direitos,
os quais sairiam absolutamente «incólumes» e «intocáveis»,
porquanto é certo que «direitos» os há bastantes e de sobra para todos os cidadãos, sem ser obviamente preciso que, para os dar a uns, seja sequer necessário «tirá-los» a outros.
E,
muito menos, se compreende como poderá justificar-se a tese de que, na mesma altura em que finalmente se reconhecesse aos homossexuais o seu legítimo direito constitucional «a contrair casamento em condições de plena igualdade»,
daí resultaria então um casamento «suprimido ou desfigurado no seu núcleo essencial,
porquanto a esse casamento nada seria retirado ou acrescentado,
muito menos ao seu núcleo essencial.
Porque bastaria tão somente que, muito simplesmente, se permitisse não mais do que o seu acesso a um conjunto de cidadãos, tão dotados de personalidade e capacidade jurídica como todos os restantes cidadãos,
a, enfim, a um conjunto de cidadãos que, sendo indiscutivelmente iguais em direitos e obrigações a todos os seus restantes concidadãos
ainda assim lhes tem sido persistentemente negado – mesmo até ao longo de muitos, muitos séculos – um reconhecimento afinal tão simples.
Finalmente,
tece o acórdão do Tribunal da Relação algumas considerações, a propósito do artigo 67º da Constituição, embora nos pareça que, a esse propósito pouco mais se vislumbra do que mais algumas citações de alguns eméritos constitucionalistas.

Ainda assim,
não podemos deixar aqui esclarecido o seguinte:
É certo que o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo nunca deixará de constituir numa sociedade tema de debate.
Mas não deixará de constituir tema de debate se, e enquanto, essa sociedade for livre e democrática, pois numa sociedade que o não seja, nem sequer tal tema seria admitido a discussão, sob pena de sangrentas perseguições a quem ousasse questionar o status quo previamente imposto ou estabelecido.

Isto, para não falar das inimagináveis consequências para aqueles que ousam querer definir ou viver a sua vida de modo distinto dos cânones estabelecidos oficialmente, quer por uma autoridade ditatorial quer por uma sociedade intolerante, homofóbica ou misógina que, obviamente, não se pode tolerar nem à qual nos deveríamos jamais submeter.
Mas,
de facto, não é somente disso que aqui e nestes autos se trata.
Embora obviamente, também o seja.
Porque o que as Requerentes aqui pretendem é ver ser-lhes conferido um direito de natureza exclusivamente civil,
Que,
embora lhes esteja constitucionalmente garantido,
lhes está, ainda assim, civilmente negado,
e sem que alguém interfira na esfera da sua vida privada,
ou sobre elas se arrogue o direito de julgamentos éticos, morais ou de qualquer outra espécie,
que, afinal, contrariem a sua liberdade de determinação numa sociedade que se quer democrática, tolerante e pluralista.

Ora,
se, como se referiu, o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo será sempre tema de infindável debate,
o que é facto é que, uma a uma, da Bélgica à Holanda, passando pela África do Sul (cujo Tribunal Constitucional assim o determinou em processamento semelhante ao dos presentes autos)
ou passando pela nossa vizinha Espanha, aqui tão perto (mas às vezes tão longe), as mais modernas e desenvolvidas nações têm por esse mundo fora garantido tal direito a quem o pretenda exercer.

Como o fizemos já
em alegações anteriores destes autos,
poderemos citar a título de exemplo uma decisão do juiz M. Brooke Murdock, de Baltimore, nos Estados Unidos da América, que declarou inconstitucional uma lei do Estado de Maryland que definia o casamento como um contrato celebrado entre um homem e uma mulher.
Com uma eloquência digna de nota escreveu aquele juiz:
«Although tradition and societal values are important, they cannot be given so much weight that they alone will justify a discriminatory statutory classification».
(Embora a tradição e os valores de uma sociedade sejam importantes, não se pode dar-lhes tanto peso que eles, só por si, justifiquem uma classificação discriminatória estatutária).

Ora,
é precisamente aqui que deverá residir, para este Tribunal Constitucional, enquanto repositório básico da Democracia Constitucional portuguesa e até como último garante da segurança institucional da sua definição como um verdadeiro Estado de Direito, a decisão de desmoronar completamente as teses provindas das instâncias ordinárias,
que ora, numa primeira fase, definem o casamento como sendo uma realidade difusa e indefinida a que se chamou «Instituição»
(pois não serão, por exemplo, a «usucapião», a Segurança Social ou a «Fundação Gulbenkian» e até a... Família, também... «Instituições»?),

ora depois, numa segunda etapa,
decidem vedar o acesso a essa mesma «Instituição» a um determinado grupo de portugueses, só porque lhes parece jurídica e «moralmente» justificável que eles sejam discriminados.

Ora,
é assim certo que, independentemente ainda de uma apreciação da sua juridicidade constitucional, e mesmo que somente ainda de um ponto de vista exclusivamente civilizacional,
não existem já hoje quaisquer razões para que a formulação do texto do artigo 1.577º do Código Civil contenha a expressão «de sexo diferente»,
como, paralelamente, não existe qualquer fundamentação lógica para que a alínea e) do artigo 1.628º do Código Civil continue a estatuir a inexistência jurídica de um casamento celebrado entre duas pessoas do mesmo sexo.

Na verdade,
tais normas deveriam, antes de mais, e como quaisquer outras normas sob interpretação, ter sido integradas não só no contexto geral da Ordem Jurídica portuguesa, mas também num contexto de época e de civilização em que vivemos, onde imperam (ou onde se procura que imperem) critérios objectivos de ética, que se integram, se fundamentam e se deduzem de forma mais imediata do n.º 2 do artigo 13º da Constituição,
desde logo, com especial relevo, pelo Exmº. Senhor Conservador da 7ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa,
independentemente até da sua vinculação e indiscutível dever de obediência ao quanto lhe está determinado no artigo 18º da Constituição,
de modo a que a os seus efeitos se pudessem imediatamente reflectir na esfera jurídica das Requerentes,

e, assim,
de modo a que um simples contrato de natureza e efeitos exclusivamente civis pudesse ter sido celebrado por duas pessoas que, dotadas de plena capacidade legal para a sua celebração, se apresentaram para esse efeito perante uma entidade administrativa para tal revestida de autoridade pública.
Mas que, no entanto, viram ser-lhes vedada essa mesma celebração pelo facto de serem do mesmo sexo,
motivo que, afinal, é não só exterior à natureza e efeitos exclusivamente civis – quer patrimoniais, quer não patrimoniais – do contrato que pretendiam celebrar, e que desprezou o facto inegável de que as contratantes possuíam, como referido, plena capacidade matrimonial, tal como a lei lhes exigia.

Com efeito,
a inclusão da expressão «de sexo diferente» no corpo do artigo 1.577º do Código Civil, se alguma vez se justificou (o que sinceramente se duvida) ou, pelo menos, se algum dia se compreendeu que fosse feita,
já não pode de forma alguma aceitar-se nos dias de hoje,
numa sociedade portuguesa, europeia e moderna, democrática e livre, que se pretende integral e inquestionavelmente desprovida de quaisquer discriminações, em razão do que quer que seja.
Pois,
pensar o contrário seria negar a duas cidadãs, livres, no pleno uso dos seus direitos civis e dotados de plena capacidade jurídica para tal efeito, o acesso e o reconhecimento público e generalizado, entre eles próprios e também erga omnes, à celebração de um simples contrato civil,
que, na própria formulação da lei, lhes possibilite o exercício do direito de «constituir família mediante uma plena comunhão de vida».
Mas,
que não se diga que algum óbice existe a tal objectivo, designadamente ao objectivo que têm as recorrentes de constituir família pelo facto de serem do mesmo sexo.

Pois,
tal argumento constituiria, como vimos, não só uma definição injustificadamente redutora do conceito de «família»,
enquanto instituição que está constitucionalmente consagrada,
como poderia também proporcionar um incompreensível e perigoso fundamento para a proibição da celebração do casamento a um homem ou a uma mulher que a ele se apresentassem com o prévio conhecimento da sua esterilidade, ou de qualquer outra impossibilidade física de procriação.

De facto,
assim também pensa Pais de Sousa (in Incapacidade Jurídica dos Menores, 34) quando refere que

«a procriação não faz parte do conceito de casamento. Assim a impotência não constitui um impedimento e só conduz à sua anulação se for desconhecida do outro cônjuge, incurável e já existente ao tempo do casamento».
«É por isso que não se fixa um limite máximo para a idade nupcial».

No mesmo sentido,
escreveu Antunes Varela (in Família, 2ª, 168):
«A plena comunhão a que alude o artigo é elemento essencial do casamento, devendo considerar-se nulas e não escritas quaisquer cláusulas derrogatórias dos deveres recíprocos a que este preceito se refere».
«Trata-se de uma comunhão para toda a vida, não se admitindo a sua celebração dele a termo ou sob condição».
«Pode haver casos de casamento válido com a certeza antecipada de que os nubentes não vão procriar, caso de impotência».
«Essencial é que cada um dos nubentes queira a plena comunhão de vida com o outro como meio de constituir família, criando condições necessárias à plena realização da sua personalidade».

Assim,
e numa palavra,

à luz dos mais modernos conceitos de liberdade individual e de pleno exercício de todos os direitos cívicos por parte dos cidadãos,
à luz da reprovação unânime que nas sociedades modernas hoje merecem todas as formas de discriminação ou diferenciação das pessoas,
motivos mais do que suficientes para o intérprete do século XXI considerar liminarmente derrogada a expressão «de sexo diferente» no corpo do artigo 1.577º do Código Civil,
e também eliminada a alínea e) do artigo 1.628º do mesmo Código,
não existem, de facto, quaisquer fundamentos para impedir duas pessoas do mesmo sexo de celebrarem um “simples” contrato de natureza e consequências única e exclusivamente civis.
Ora,
é precisamente neste preciso ponto destas alegações que, sem qualquer sobra de dúvida se impõe uma particular e muito significativa referência à opinião da Dr.ª Susana Brasil de Brito,
que vem expressa no «Parecer» para cuja totalidade remetemos expressamente para o documento que a final se junta (e que, não obstante a sua relevância, só não se repete agora na íntegra por manifestas razões de economia processual, mas que aqui, ainda assim, se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).
Assim,
no seu «Parecer» – cujos sublinhados e destaques (que são feitos exclusivamente nesta citação e não no texto original junto a estas alegações ) são exclusivamente nossos – a Dr.ª Susana Brasil de Brito demonstra que

«A pretensão de que a Constituição determinaria a preservação da heterossexualidade enquanto decorrência da pretensa natureza institucional do casamento (civil),
«com a consequente necessidade de criação de um regime jurídico a se para os “casamentos” homossexuais, em paralelo com a pluralidade empírica de formas de vida em comum tidas de algum modo por diferenciadas do ponto de vista das representações sociais tradicionais,
«omite inteiramente o significado normativo da evolução do instituto».

É verdade que
«O bloco estatutário de conteúdos jurídicos assinalados pela lei ao casamento – de que se destacam os efeitos sucessórios, os efeitos pessoais entre os cônjuges, o regime de bens e o regime patrimonial geral, para além da mais difusa definição jurídica e simbólica do "estado civil" – continuam a ser assinalados em exclusividade ao casamento, cujo acesso é reservado pela legislação infraconstitucional apenas a uniões heterossexuais.

«Aos casais constituídos por pessoas do mesmo sexo, estes efeitos, que se encontram agregados no bloco estatutário do regime jurídico do casamento e são, pois, atribuídos apenas mediante a celebração do casamento civil, vêm recusados.

Mas, como afirma a Dr.ª Susana Brasil de Brito,
«A diferenciação daí resultante é insusceptível de justificação à luz da generalidade dos efeitos jurídicos do casamento:
«não se descortina fundamento possível, na perspectiva da circunstância da pertença, ou não, a sexos diferentes, na recusa de uma eficácia jurídico-sucessória própria da sucessão legal à união estável de duas pessoas do mesmo sexo que tenham partilhado as suas vidas, ou na recusa de um modelo jurídico aderente à realidade da vida em comum, tal como o que se refere a toda a classe de efeitos patrimoniais do casamento e aos regimes de bens. Ou ainda, no reconhecimento de um dever de assistência característico das relações jurídico-familiares mais estreitas.

Ora,
o fundamento para esta diferente tutela jurídica das uniões homo e heterossexuais
«é – geral e genericamente – imputado ou à tradição, ou à natureza institucional do casamento, a que o artigo 1577º do Código Civil daria expressão, em obediência ao disposto no artigo 36º, n.º 1, da Constituição.

E,
no sentido desta suposta natureza institucional do casamento
«é sustentado que a garantia constitucional do casamento se funda e se esgota na instituição do casamento tal como o devir histórico­‑cultural a trouxe até aos nossos dias, de que a heterossexualidade haveria que ser considerada um elemento constitutivo.

Contudo,
se assim fosse,
«colocada perante a ordem jurídica constitucional a questão da inacessibilidade das uniões de pessoas do mesmo sexo a um bloco estatutário de efeitos jurídicos equivalentes aos que, por via do artigo 1577º, o Código Civil reserva às uniões de indivíduos de sexo diferente,
«ter-se-ia de concluir pela necessidade de criação de um novo instituto que permitisse estender às uniões homossexuais todos os efeitos jurídicos assinalados ao casamento que devessem considerar-se independentes da heterossexualidade da união,
«realizando-se assim, em toda a plenitude, o escopo de protecção constitucional do artigo 36º da Constituição.
No entanto,
«sempre teria de ser demonstrado, a título de pressuposto necessário de uma tal solução dualista, que o instituto jurídico do casamento, enquanto contrato celebrado entre duas pessoas que pretendem constituir uma comunhão plena de vida corresponde àquilo que, de acordo com as representações culturais basilares, seria intrinsecamente característico de tal instituição.

Porque,
de outro modo
«estar-se-ia simplesmente a assumir que a instituição jurídica do contrato do casamento e a instituição socio-cultural do casamento são coincidentes.
«E isto está longe de poder ser confirmado.

Com efeito,
«do desenho jurídico do instituto jurídico casamento estão ausentes, e bem, alguns dos traços se estimam ser de primeira ordem na representação do que é um casamento do ponto de vista da vivência efectiva na nossa comunidade.
De facto, é manifesto que
«a relação institucional assente no contrato definido no artigo 1577º do Código Civil refere-se a uniões entre indivíduos que, sendo sempre juridicamente cônjuges, podem, mas não são juridicamente obrigados, a viver sob o mesmo tecto, que podem ou não nutrir um profundo apego emocional um pelo outro, que podem ou não apreciar-se intensamente do ponto de vista sensual, que podem ou não estabelecer um com o outro uma conexão de intimidade psicológica essencial, que podem ou não procurar em conjunto a realização pessoal e as recompensas existenciais cuja protecção subjaz, pelo menos mediatamente, à garantia do artigo 36º, n.º1 da Constituição.

Ou seja:
«passado em revista o conteúdo da relação jurídica estabelecida do contrato de casamento, verificamos que a ordem jurídica limita-se, nesse particular aspecto, a proporcionar um conjunto de efeitos jurídicos,
«não se imiscuindo – por falta de vocação para tal no âmbito de um Estado constitucional – no que, do ponto de vista dos indivíduos, corresponde ao âmago de uma decisão de partilhar a vida com outra pessoa.

Assim, pois,
o «significado social de supremo compromisso existencial entre duas pessoas não se encontra alojado no Direito.

Porque é preciso ter presente que
«A definição do casamento como contrato ou como instituição a que a legislação haveria de conformar-se tem sido várias vezes revisitada ao longo da história do instituto em diferentes contextos.

A ideia de contrato surge-nos
«como um topos argumentativo favorável à autonomia e à preponderância do indivíduo,
por oposição a instituição, que é
«um topos da argumentação tendente à afirmação da supremacia dos interesses (valores) supra-individuais.

Aliás,
«Essa mesma tensão entre contrato e instituição animara já de modo significativo o debate que acompanhou a elaboração do Código de Seabra. Defensores da instituição opunham-se então aos prosélitos do estabelecimento do casamento civil, um contrato (e não o sacramento, e não a instituição).
«Tratava-se então, por detrás desta dicotomia da expressão de uma tensão entre o papel do Estado, que vinha introduzir o casamento civil, avanço tido pelos opositores como uma ilegítima violação da intangibilidade da instituição, um domínio entregue à Igreja.

A pretensão de
«fazer ingressar o instituto no âmbito do sistema normativo do Estado (ou controlado pelo Estado), foi muito justamente vista então como um ataque desferido à instituição do casamento.

E não seria rigoroso negar que
«eram inteiramente razoáveis as apreensões dos opositores do casamento civil e o receio – ou mesmo a indignação – de se estar perante uma desfiguração da instituição do casamento.
uma vez que
«A pretensão de que a constituição do vínculo do casamento seria doravante questão regulada pelo Estado envolvia (…) a apropriação de um quid que havia sido originalmente criado pelo génio dos canonistas e que, nessa medida, seria compreensivelmente sentido como pertença da Igreja.

De facto,
«o carácter contratual que havia sido assinalado ao casamento pelos canonistas ofereceu-se, sobretudo a partir do século XVIII, como um topos da argumentação mediante a qual o poder temporal reclamou ser o legítimo possuidor do instituto.
Assim,
«regulação do casamento, quer no que respeita à sua celebração, quer no que respeita aos seus efeitos, foi sendo vertida sistematicamente para as legislações nacionais,
«com a consequência directa de, a maior ou menor espaço temporal, vir aí a desenvolver-se dentro dos parâmetros próprios do novo contexto.

Efectivamente,
«O transporte para um novo habitat normativo determinaria uma progressiva alteração – desconfiguração – da estrutura normativa do instituto.
«A importação do instituto para a esfera do Estado saldou-se por uma regulação intensa do vínculo, abrangendo, para além dos efeitos patrimoniais, uma pretensão de regulação da esfera privada sobretudo ao longo do século XIX, com uma proliferação de efeitos jurídicos assinalados ao casamento, quer no plano patrimonial, quer no plano pessoal, seja ainda na perspectiva das relações entre os cônjuges, quer no que respeita à eficácia externa do casamento.
Verificou-se, pois, uma
«descaracterização da figura inicial, tal como tomada ao direito canónico,
descaracterização que
«atingiu precocemente dois aspectos nucleares do instituto original: a dissolubilidade do vínculo e a irrelevância da impotentia cuendi.

E
com isto,
o pressuposto da heterossexualidade da união deixou de encontrar justificação num plano estritamente dogmático.

Em suma,
«No fim deste percurso evolutivo, o casamento (civil) encontra o seu fundamento e função unicamente no seio dos parâmetros jurídico­‑constitucionais positivos.

E, à luz destes, como conclui Susana Brasil de Brito no seu douto «Parecer»
«não se descortina fundamento para a heterossexualidade do instituto.

«Ao contrário do que reclamam os que sustentam a necessária heterossexualidade do casamento cujo regime é estabelecido pelo Código Civil,
«os traços essenciais do que as representações sociais definem como o mais profundo compromisso existencial entre duas pessoas – no que se esgota tudo o que se possa dizer com sentido relativamente à garantia institucional do casamento – estão presentes nas uniões homossexuais,
«que por isso reclamam o acesso à celebração do casamento.

Todavia,
«embora do ponto de vista das representações culturais seja inegável que o casamento tem uma vertente necessariamente jurídica, o seu significado social de supremo compromisso existencial entre duas pessoas não se encontra alojado no Direito, que apenas dá dele um reflexo externo, na medida dos fins da ordem jurídica constitucional.
«Esses artefactos culturais envolvem as representações sobre o que é uma vida boa, aquela em que o indivíduo experimenta a possibilidade do seu florescimento identitário-social aí residindo também a razão de ser da (…)garantia institucional, ela também fundamentada na dimensão eudemonística da dignidade»
«a invocação do carácter institucional do casamento não é habitualmente realizada com o alcance fundamentador agora apresentado, limitando-se a concitar uma indemonstrada necessidade de garantia de uma instituição, cujo conteúdo, de resto, é habitualmente deixado indefinido.
Ora, a cogência da instituição não pode deixar de ser objecto de fundamentação, sobretudo no quadro de uma garantia constitucional que permita ancorar e justificar a garantia institucional no âmbito do espaço de cidadania».
«Na verdade, a persistente indefinição do conteúdo pretendido pelos que se contentam em invocar a instituição e que, sobretudo, não ensaiam a demonstração do fundamento da sua cogência, tem sido um traço comum dos ânimos recalcitrantes à evolução que a história vem imprimindo a este instituto normativo.».

Por tudo isto, portanto, fica demonstrada a conclusão:
«A pretensão de que a Constituição determinaria a preservação da heterossexualidade enquanto decorrência da pretensa natureza institucional do casamento (civil), com a consequente necessidade de criação de um regime jurídico a se para os “casamentos” homossexuais, em paralelo com a pluralidade empírica de formas de vida em comum tidas de algum modo por diferenciadas do ponto de vista das representações sociais tradicionais, omite inteiramente o significado normativo da evolução do instituto e o sentido da garantia institucional consagrada na Constituição».



Depois,
cabe ainda aqui uma nova referência a Jorge Miranda e Rui Medeiros que, ainda que se manifestem inequivocamente contra a possibilidade do casamento entre duas pessoas do mesmo sexo, ainda assim, e em referência ao artigo 13º da Constituição,
acabam por não ter outro remédio se não admitir que:
«A igualdade aqui proclamada é a igualdade perante a lei, dita por vezes igualdade jurídico-formal, e ela abrange, naturalmente, quaisquer direitos e deveres existentes na Ordem Jurídica portuguesa».
«Porque todos têm a mesma dignidade social (outra maneira de referir a dignidade da pessoa humana, base da República), a lei tem de ser igual para todos».
«Mas porque há desigualdades de facto, (físicas, económicas, geográficas, etc.) importa que o poder público e a sociedade civil criem ou recriem as oportunidades e as condições que a todos permitam usufruir dos mesmos direitos e cumprir os mesmos deveres».
Ou seja, e concluem Jorge Miranda e Rui Medeiros,
«igualdade perante a lei não é igualdade exterior à lei. É, antes de tudo, igualdade na lei. Tem por destinatários, desde logo os próprios órgãos de criação do direito».

Contudo,
apesar da clara e inequívoca formulação constitucional deste «Princípio da Igualdade» e mesmo tendo presente a doutrina acima citada, é bem certo – e as Recorrentes bem o sabem – que nenhum princípio pode em Direito ser formulado cegamente e desligado da concreta realidade do mundo.
Pois, tal como foi tão esclarecedoramente formulado pela Comissão Constitucional (Parecer n.º 32/82),
«O Princípio da Igualdade não funciona por forma geral e abstracta, mas perante situações ou termos de comparação que devam reputar-se concretamente iguais – e, antes de tudo, à luz de padrões valorativos ou da ordem axiológica constitucional».
Ou também,
«A desigualdade de tratamento será consentida quando, depois de adquirido que os critérios de distinção exigidos pelo legislador se compatibilizam com os objectivos da Lei, se concluir no sentido de a Constituição, à luz dos princípios que adopta e dos fins que comete ao Estado, autorizar o tratamento diferenciado das situações delimitadas na Lei ordinária».
- Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 76/85

«O princípio da igualdade consagrado no artigo 13º n.º 1 da Constituição, não deve nem pode ser interpretado em termos absolutos, impedindo nomeadamente que a lei discipline diversamente quando diversas são as situações que o seu dispositivo visa regular, mas há sem dúvida violação desse princípio quando o legislador estabelece distinções discriminatórias».
- Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 44/84

Assim,
«a caracterização de uma norma como inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, depende, em última análise da ausência de fundamento material suficiente, isto é, falta de razoabilidade e consonância com o sistema constitucional»
- Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 309/85

«O princípio da igualdade, numa das suas dimensões, vem a traduzir-se na proibição (dirigida, designadamente ao legislador) de estabelecer diferenciações de tratamento razoáveis, porque carecidas de fundamento ou justificação material bastante...»
- Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 86/88

«A igualdade, sendo uma exigência de justiça, é, fundamentalmente, uma igualdade proporcional, só consentido distinções que não firam essa ideia de justiça ou de proporção».
- Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 169/90

«Na perspectiva da proibição do arbítrio, o princípio da igualdade identifica-se com uma proscrição da adopção de medidas manifestamente desproporcionadas ou inadequadas, quer à ordem constitucional de valores, quer à situação fáctica que se pretende regulamentar».
- Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 203/94

«O princípio da igualdade, que vincula também o próprio legislador, reclama, não que todos sejam tratados, em quaisquer circunstâncias, por forma idêntica, mas sim recebam tratamento semelhante os que se acham em condições semelhantes.
«Quando o legislador constitucional se não limita a enunciar o princípio geral da igualdade, mas especifica os títulos – ou alguns deles – que não podem fundar um tratamento diferenciado entre os cidadãos, tem de entender-se, em princípio, que viola a regra constitucional da igualdade o preceito que dê relevância a um desses títulos para, em função dele, beneficiar ou prejudicar um grupo de cidadãos perante os restantes».
- Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 371/89
Deste modo,
e sendo certo que a Constituição também claramente prescreve no n.º 2 do seu artigo 266º o respeito pelo Princípio da Igualdade (bem como do princípio da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé) por parte dos órgãos e agentes administrativos,
como conciliar a aplicação do Princípio da Igualdade com a celebração de um contrato de casamento entre duas pessoas do mesmo sexo?
Que tratamento constitucional, isto é, como deve ser vista à luz do Princípio da Igualdade a inscrição da fórmula «de sexo diferente» contida no artigo 1.577º do Código Civil e a própria existência da alínea e) do artigo 1.628º do mesmo Código?
Até porque é certo que
« O princípio constitucional da igualdade do cidadão perante a lei é um princípio estruturante do Estado de Direito Democrático e do sistema constitucional global, que vincula directamente os poderes públicos, tenham eles competência legislativa, administrativa ou jurisdicional».
- Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 186/90

Mas,
independentemente das considerações técnico jurídicas já feitas e das que abaixo ainda se farão, não podem as Recorrentes deixar de aqui referir um aspecto que reputam de particular e essencial importância:
De facto,
e se virmos bem, que razão haverá, ao fim e ao cabo, para impedir duas pessoas do mesmo sexo de celebrarem um simples contrato de casamento?
Que razões,
mas que razões MATERIAIS,
poderiam ser invocadas para impedir o acesso a duas pessoas do mesmo sexo que pretendem constituir família numa perspectiva matrimonial?
De facto... nenhumas.

Por isso mesmo,
tal foi inequivocamente considerado no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 309/85, cuja citação não resistimos a repetir:
«Assim, a caracterização de uma norma como inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, depende, em última análise, da ausência de fundamento material suficiente, isto é, falta de razoabilidade e consonância com o sistema constitucional».

E mais:
se virmos bem,
mesmo até que, por mera hipótese académica, não existisse qualquer das normas constitucionais que vimos invocando,
e mesmo até que não existisse sequer a Constituição, ainda assim,
e ainda que sem qualquer forma de argumentação técnico jurídica,
mas então, somente
de uma perspectiva pura e «simplesmente» humanista,
somente de um ponto de vista «meramente» ético,
e somente recorrendo a «vulgares» argumentos de ordem exclusivamente racional e material,
ainda assim, dizíamos,
que razões, afinal, persistiriam para denegar a uma família portuguesa, a duas cidadãs de plenos direitos – as RECORRENTES – que, em união de facto, vivem neste preciso momento um projecto de comunhão de vida baseado em compromissos mútuos, quer de ordem sentimental, moral, ou patrimonial,
a possibilidade de concederem juridicidade a tal realidade de facto,
e, assim, a acederem a todas as consequências jurídicas
e, tantas vezes, a consequências de simples ordem prática, social ou quotidiana – que dessa nova configuração jurídica para elas adviriam?

De facto,
absolutamente nenhumas.

Até por que
é inequívoco que todos estes argumentos que se invocaram receberam já há muito a consideração que lhes era devida,
por parte até deste Tribunal Constitucional.

Com efeito,
tal resultará claramente demonstrado da leitura do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 351/05 (proferido no âmbito do Processo n.º 372/05 da 3.ª Secção e em que foi Relator o Sr. Conselheiro Vítor Gomes)
que não deixa dúvidas quando decidiu
«julgar inconstitucional a norma do artigo 175° do Código Penal, na medida em que estabelece regime que ofende a proibição de discriminação em razão da orientação sexual que emana do princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, tal como consagrado no artigo 13 ° da Constituição da República Portuguesa».

E também,
«Julgar inconstitucional, por violação dos artigos 13.º, n.º 2 e 26.º, n.º 1, da Constituição, a norma do artigo 175.º do Código Penal, na parte em que pune a prática de actos homossexuais com adolescentes mesmo que não se verifique, por parte do agente, abuso de inexperiência da vítima e na parte em que na categoria de actos homossexuais de relevo se incluem actos sexuais que não são punidos nos termos do artigo 174.º do mesmo Código».

Aliás,
esta decisão (segundo consta do próprio texto do acórdão), veio dar pleno acolhimento à doutrina do acórdão de 22 de Outubro de 2003 do Supremo Tribunal de Justiça, onde se decidiu que, quando colocadas em confronto as normas dos artigos 174º e 175º, ambas do Código Penal,
se verificavam «três diferenças no tratamento legal dos actos homossexuais com adolescentes em cotejo com o dos heterossexuais:
«é também punido quem levar outrem à prática desses actos;
«são abrangidos todos os actos sexuais de relevo e não só a cópula e o coito anal ou oral;
«há sempre punição, mesmo que se não verifique abuso da inexperiência do adolescente.
O que, conclui-se então naquele aresto,
«poderá representar uma ofensa ao princípio da igualdade, tal como consagrado no artigo 13° da Constituição da República Portuguesa».

Mas mais,
Não deixar de considerar-se de particular significado que no acórdão do Tribunal Constitucional (n.º 351/05) a que nos vimos referindo, se encontre já claramente demonstrado até que ponto este Tribunal Constitucional concede, de facto, relevo às diferentes valorações normativas de que resulte uma desconformidade constitucional, designadamente no que toca ao «Princípio da Igualdade.

Pois,
ali se considera (ainda que a propósito do julgamento de inconstitucionalidade da norma do artigo 175º do C. Penal) – com sublinhados nossos, que
«... a incriminação não deixa de revelar resquícios de uma opção político-criminal que se não desprende da tutela de sentimentos gerais de moralidade sexual...
«...um preceito que tem sido, com razão, frequentemente dado como exemplo paradigmático do direito penal sexual, ainda de contornos moralistas contido no Código Penal de 1982».

Depois,
de não menor significado se reveste ainda a consideração que no mesmo acórdão do Tribunal Constitucional se faz quando, ainda sobre o mesmo tema, se refere tão esclarecedoramente:
«Os direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, postulados pelo respeito da dignidade da pessoa humana, traduzem-se no direito dos cidadãos à sua auto-realização como pessoas, onde se compreende o direito à autodeterminação sexual (cf. Paulo Mota Pinto), nomeadamente enquanto direito a uma actividade sexual orientada segundo as opções de cada um dos seus titulares.
«E, relativamente àqueles direitos, a Constituição garante, expressamente (artigo 26°, n.º 1, "in fine"), a sua "protecção legal contra quaisquer formas de discriminação".
«Isto significa que estes direitos não podem ser restringidos de forma diferenciada, assente em factores que constituam elementos nucleares do seu conteúdo, como seja, no caso, o tipo de orientação sexual que o seu titular adoptou.
«Nesta medida e sem embargo de se reconhecer que, nestes termos, a protecção do direito a uma actividade sexual orientada segundo as opções de cada um dos seus titulares está já assegurada no citado artigo 26°, n.º 1, da CRP, deve, ainda, entender-se que a "orientação sexual" é uma categoria subjectiva que, embora não enunciada expressamente no artigo 13°, n.º 2, da CRP, se deve colocar ao lado das que neste preceito se consideram insusceptíveis de fundamentar diferenças de tratamento jurídico...».

Ora,
e sem embargo,
que não fique por referir que, também já no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 247/05 (proferido no âmbito do Processo n.º 891/03 da 1.ª Secção e em que foi Relatora a Sr.ª Conselheira Maria João Antunes)
havia sido igualmente decidido e de forma invulgarmente esclarecedora que
«Julgar inconstitucional, por violação dos artigos 13º, n.º 2, e 26º, n.º 1, da Constituição, a norma do artigo 175° do Código Penal, na parte em que pune a prática de actos homossexuais com adolescentes mesmo que se não verifique, por parte do agente, abuso da inexperiência da vítima».

Ora,
Também este acórdão, tal como o que anteriormente citámos, havia já feito particular referência ao facto de que
«o Código Penal de 1982, na sua versão primitiva, não deixou de ligar os "crimes sexuais" (assim qualificados pela primeira vez) aos sentimentos gerais de moralidade sexual, mostrando-se esta característica ao nível dos tipos incriminadores...»,
e também ainda a mesma consideração e referências a
«uma opção político-criminal que se não desprende da tutela de sentimentos gerais de moralidade sexual, como se mostra, desde logo, pela utilização do conceito de "acto contrário ao pudor" e, depois, pela caracterização da conduta do agente, como sendo a de quem "desencaminha" o menor para aquela prática – "um preceito que tem sido, com razão, frequentemente dado como exemplo paradigmático do direito penal sexual, ainda de contornos moralistas contido no Código Penal de 1982».

Depois,
e não menos significativamente, refere-se ainda neste acórdão,
«...este diploma obrigava o criminoso a dotar a ofendida, nos casos de estupro e de violação de mulher virgem, ainda que com ela casasse;
«fazia corresponder ao casamento o termo da acusação da parte ofendida e da prisão preventiva, prosseguindo a acção pública à revelia até julgamento final;
«e previa a suspensão da condenação, que caducaria se, passados cinco anos sobre o casamento, não houvesse divórcio ou separação judicial por factos somente imputáveis ao marido, pois caso contrário o réu cumpriria a pena».

Depois,
e ainda como constituindo inequívoca exemplificação, o que vimos tentando fazer, do quanto a própria jurisprudência do Tribunal Constitucional valora já a propósito da contraposição das diferentes valorações em razão das distintas orientações sexuais dos cidadãos,
é ainda primordial que voltemos a citar este acórdão n.º 247/2005, nomeadamente quando ali se considera que
«Princípio estruturante do Estado de direito democrático e do sistema constitucional global... o princípio da igualdade vincula directamente os poderes públicos, tenham eles competência legislativa, administrativa ou jurisdicional o que resulta, por um lado, da sua consagração como direito fundamental dos cidadãos e, por outro lado, da 'atribuição aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias de uma força jurídica própria, traduzida na sua aplicabilidade directa, sem necessidade de qualquer lei regulamentadora, e da sua vinculatividade imediata para todas as entidades públicas, tenham elas competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (artigo 18°, n.º 1, da Constituição)' (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 186/90).
Outro exemplo relevante do que vimos a tentar demonstrar, será provavelmente constituído pela seguinte passagem deste mesmo acórdão n.º 247/2005, que seria imperdoável deixar passar em claro,
pois ela constituirá, talvez, uma das mais esclarecedoras opiniões que nas presentes alegações poderão ser referidas ou consideradas.

De facto,
é com muito e especial ênfase, e redobrada admiração, que citamos:
«Uma explicação possível para um tratamento distinto dos comportamentos em função da natureza heterossexual ou homossexual dos actos sexuais de relevo pode ser encontrada nos trabalhos preparatórios, os quais apontam para a admissão do desvalor especial da homossexualidade e para a ideia de que a heterossexualidade é que representa a situação mais normal, havendo naquela algo de estatisticamente anormal, mesmo nos países onde se reconhece com latitude o direito à diferença...»
«Seriam, assim, razões ligadas à maior "normalidade" dos comportamentos heterossexuais (e, consequentemente ao algo de "anormal" que existe nos comportamentos homossexuais) e ao "desvalor especial da homossexualidade" que justificariam a especial punição prevista no artigo 175º do Código Penal.
«Ora, estes parâmetros de normalidade/anormalidade, extraídos, aparentemente, de uma observação "estatística" da sociedade, afiguram-se imprestáveis para justificar a diferença de tratamento jurídico, face aos artigos 13º, n.º 2, e 26º, n.º 1, da Constituição.
«É precisamente no tratamento de situações que se inserem em categorias socialmente minoritárias ou sociologicamente desfavorecidas que o princípio constitucional da igualdade cobra a sua principal força, tutelando, sempre ou de algum modo, um direito "à diferença" ou "de diferença".
«Justificar uma diferença na ampliação de normas restritivas de direitos fundamentais com a protecção de outros na base de uma presumível lesão causada – e só causada – por uma determinada prática sexual que não é – e por não o ser – estatisticamente normal traduz-se, afinal, em tratar discriminatoriamente uma situação resultante da orientação sexual adoptada, inerente ao direito à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade, ou seja, com violação do disposto nos artigos 13°, n.º 1, e 26°, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa».
«Está, assim, a admitir-se um "desvalor especial" relativo à homossexualidade, como não deixou de ser reconhecido nos trabalhos preparatórios já mencionados».

- De facto, esclarecedor.

Mas, recorde-se,
deixámos acima (e até por diversas vezes) relegado para momento ulterior destas alegações uma cabal e mais detalhada explicação sobre um argumento recorrente,
que não só encontrámos de comum nas três peças processuais que já deixámos comentadas (as alegações do Ministério Público, a sentença da 1ª Instância e o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa),
mas que encontramos também em muitas opiniões doutrinárias e até jurisprudenciais,
que as Recorrentes persistentemente vêm escrito na comunicação social, ouvem em debates televisivos ou em comentários de rua.

De facto,
refere-se tal argumento ao «Princípio da Igualdade»
que pode desde logo ser encontrado, de forma inegavelmente programática, obviamente definidora e bastamente esclarecedora de uma clara intenção constitucional, logo na epígrafe do artigo 13º da Constituição da Repúblicas Portuguesa,
mas que, ainda assim, tantas vezes é interpretado de forma absolutamente desconforme não só com os mais fundamentais preceitos constitucionais, mas até com os mais básicos princípios do Estado de Direito.

Assim,
poderá tal argumento ser imediatamente definido por uma simples frase que, nem que fosse somente pela forma pejorativa e insultuosa com que tantas vezes é atirada à cara das Recorrentes, já seria, só por si, bem esclarecedora da sua desumana desconformidade constitucional e até da sua genérica anomia, e que reza assim:
«A proibição de discriminações não significa uma exigência de igualdade absoluta em todas as situações, nem proíbe diferenciações de tratamento;
«Por outras palavras, o “Princípio da Igualdade” significa tratar de forma igual aquilo que é igual e tratar de forma diferente aquilo que é diferente».
Ora,
o princípio constitucional da igualdade não significa isso.

Contudo,
se for formulada no vazio, isoladamente e fora de um contexto específico, uma afirmação como esta:
«devemos tratar de forma diferente aquilo que é diferente»,
merecerá, provavelmente, uma aprovação generalizada.
Quem poderia dela discordar?

De facto,
ninguém discordaria de uma lei que atribuísse um “benefício fiscal” a um cidadão deficiente, um “subsídio de reinserção” a uma família mais carenciada, uma licença de parto ou de aleitamento a uma mulher...

Mas,
como acima já dissemos,
esse «tratamento diferente» a quem é diferente ou, por outras palavras, essa «discriminação»,
valerá e terá merecimento ético, validade legal e, enfim, correspondência constitucional, unicamente se for formulada no sentido positivo.

Porque,
se for formulada no sentido negativo ela já será, então, constitucionalmente ilícita.
Como é por demais óbvio,
defender que se deve, numa formulação negativa, «tratar de forma diferente aquilo que é diferente» é tudo menos o «Princípio do Igualdade».
Será, sim, o «Princípio da Diferença».
Nunca o «Princípio da Igualdade».

Porque
o «Princípio da Igualdade» será exactamente «tratar de forma igual aquilo que, como é óbvio, é precisamente... diferente».

Ao contrário,
tratar «diferentemente as pessoas que são diferentes, ou tratar de forma igual as pessoas que são iguais»,
ou seja e por outras palavras,
«discriminar as pessoas que são diferentes, precisamente porque elas são diferentes ou exactamente em função dessa diferença»,
isso é fácil – e toda a gente o consegue, sem qualquer esforço.

Pois tanto, tanto sangue tem corrido por essa História da Humanidade, tanto sofrimento tem havido, precisamente por isso ser tão fácil de fazer...
Na verdade,
para que fique determinado (ou simplesmente possibilitado), que as pessoas diferentes serão tratadas de forma diferente
se virmos bem,
não era necessária uma formulação constitucional para nada.
Ao invés,
a necessidade de uma previsão ou de uma formulação precisa, inequívoca e até bem detalhada (embora exemplificativamente), na nobre sede que é uma Constituição,
e sistematizada até em sede de «Direitos, Liberdades e Garantias»
decorre precisamente da imperiosa necessidade de deixar patentes, bem claros, isentos de quaisquer equívocos ou de interpretações restritivas ou dúbias, e até, como vimos, precisamente inversas às da intenção constitucional,
os valores éticos, humanistas e materialmente racionais que são, afinal, os constituem e definem em rigor um Estado de Direito,
os quais, portanto, nos exigem – a TODOS – isso sim,
que se trate de forma igual precisamente... quem é diferente.

Por outras palavras,
para «tratar de forma igual as pessoas que são diferentes»,
ou, por outras palavras, para não as discriminar,
o que a História dos Homens nos deixa bem demonstrado que já é muito mais difícil e que nem toda a gente consegue praticar,
daí sim, e como vimos, é que decorre a necessidade da sua consagração constitucional.

Pois,
a melhor prova dessa imperiosa necessidade de consagração constitucional, (muito bem específica e até sujeita a melhor explicitação em 2004 para que dela, no caso da discriminação dos homossexuais, não resultem equívocos),
e a melhor prova de que nem toda a gente consegue, de facto, «tratar de forma igual as pessoas que são diferentes», de modo precisamente a... não as discriminar,
será exactamente a posição de quem – inacreditavelmente e utilizando precisamente um argumento constitucional de intenção obviamente contrária – com a Constituição numa mão e com uma caneta na outra, vemos a defender que duas cidadãs portuguesas de pleno direito,
integralmente dotadas de personalidade e capacidade jurídica e judiciária e, por isso, também de plena capacidade matrimonial,
persistentemente as impede de celebrar um mero e simples contrato de natureza exclusivamente civil,
e incompreensivelmente lhes veda o acesso a um dos mais simples e básicos – e para tanta gente até já trivial – dos direitos, e que, assim, bem de longe e impotentes, vêem ser concedidos aos demais cidadãos deste país.

E é então que lhes dizem que esse acesso lhes é vedado porque a sua orientação sexual é «diferente».
E que, por isso, têm de ser tratadas... «de forma diferente»,

E é então que lhes dizem, enfim,
que a uma discriminação entre duas famílias que querem ambas formalizar e vincular contratualmente o seu projecto de comunhão de vida,
desde que seja feita, claro está, em razão da sua orientação sexual «não é arbitrária nem intolerável».
Mas que, de facto, o é.
Ora,
e chegados a este ponto destas alegações,
e sendo certo que «uma imagem vale mil palavras»,
permitam V. Exª.s, Meritíssimos Juizes Conselheiros deste Tribunal Constitucional, que o mandatário das Recorrentes e subscritor agora destas suas alegações, relate um acontecimento, absolutamente verídico que viveu pessoalmente e que melhor ilustrará o quanto se pensa sobre este assunto.

Permitam também que o faça na primeira pessoa:


Corria o ano de 1974.

Em Portugal a Democracia não tinha ainda sido restaurada pelo «25 de Abril». Vivíamos ainda em plena «Guerra Fria».
Na África do Sul vivia-se o auge do «Apartheid».
«Apartheid», que significa literalmente «vida separada» no idioma africânder, foi a palavra escolhida para designar o regime instituído em 1948 – e que vigorou até à presidência de Fredrerik de Klerk em 1990 – segundo o qual os «brancos» detinham todo o poder e direitos de cidadania, bem como a exclusiva legitimidade para o exercício dos poderes legislativo, executivo, e judicial, e só eles podiam votar.
Os povos restantes, os «não-brancos», eram obrigados a submeter-se a estes imperativos e a viver «separadamente» e sem sequer terem acesso ao direito de serem simples cidadãos.
Os que se opunham ao regime eram presos durante décadas, como Nelson Mandela, ou simplesmente assassinados, como Steve Biko, aos 31 anos.

Eu vivia nessa ocasião em Moçambique, ali perto, e não foi por isso nada extraordinária aquela visita familiar à África do Sul.
Mal sabia eu ainda o quanto os meus sonhos adolescentes se iriam naquela ocasião desmoronar...
Viajámos de carro desde Maputo (então Lourenço Marques) e chegámos a Joanesburgo já ao final da tarde. No dia seguinte, logo pela manhã, dirigimo-nos a Pretória, a capital, que dista somente escassos 50 quilómetros. Tínhamos combinado um encontro com um casal de velhos amigos de meus pais, que ali viviam há longos anos.
O local do encontro, recordo, era um jardim fronteiro a um grandioso edifício governamental de tijolo vermelho, decorado com baixo relevos de cenas de batalhas da Guerra dos Boers.
Chegámos cedo e ainda antes dos nossos amigos.
E foi então que naquele jardim vivi uma experiência que, aparentemente simples, acabou por ser uma das mais marcantes da minha vida:

Ali, naquele bonito jardim havia dois bancos, absolutamente iguais, qualquer deles sob a confortável sombra de duas frondosas árvores.
Mas, de súbito,
reparei que um desses bancos tinha nas costas uma pequena placa aparafusada que dizia «Whites Only»; o outro banco tinha uma placa idêntica que dizia «Non-Whites».
Ainda hoje, tanto tempo depois, me lembro de como a visão daqueles dois bancos e de como a imagem daquelas duas placas me atingiu como um autêntico soco no estômago!
Ali estava agora, mesmo à minha frente, o exercício concreto, a corporização efectiva daquele abominável regime sobre o qual eu tanto tinha já lido e me tinham ensinado a desprezar e a abominar.

De repente,
o «Apartheid» não era já uma «teoria», não era já um «regime político», não era já uma espécie qualquer de «realidade longínqua», quase abstracta, de que se falava por esse mundo fora.

Agora, ali estava o «Apartheid», ali mesmo à minha frente, vivo e absolutamente real. Era como se aqueles dois bancos de jardim ali estivessem a gritar e a proclamar, quase até com uma torpe arrogância, aquela discriminação absurda entre seres humanos.
Recordo ainda a náusea indizível que a visão daqueles dois bancos me causou. Tanto, que apesar dos amigos dos meus pais ainda se terem demorado um pouco, nem sequer fui capaz de me sentar naquele «banco dos brancos».
Porque me parecia que, se ali me sentasse, era como se eu também estivesse a «colaborar» com tudo aquilo e a tornar-me cúmplice daquela aberração criminosa.
E ali fiquei eu, ostensivamente de pé!
E, embora ciente da inutilidade ridícula e quase patética do meu gesto, senti ao menos que não estava a exercer um «direito» que me estavam a dar, mas que era um direito que eu não queria, porque o abominava e desprezava profundamente.

Depois, logo que os amigos dos meus pais chegaram, quase antes de os cumprimentar, apontei-lhes os dois bancos e perguntei-lhes como podiam eles conviver ali, e há tantos anos, naquele país com aquela aberração.
Surpreendidos com a minha pergunta (e até essa própria surpresa foi inesquecivelmente chocante), fizeram-me notar em tom sobranceiro e condescendente que se ali havia um banco de jardim «só para brancos», também havia outro, rigorosamente igual, e que também estava à sombra e tudo, que era só para os «negros» e outros «não-brancos».
Insisti, e perguntei-lhes novamente como podiam eles viver num país que discriminava e segregava daquela maneira os seres humanos, ao ponto de separar os seus bancos de jardim.

E perguntei-lhes se concordavam com o regime do Apartheid.
Nunca mais poderei esquecer a resposta que ouvi, e que ainda hoje me perturba pela frieza da sua proclamação e pela imbecilidade da sua certeza:
- Claro que sim! Mas não são os brancos «diferentes» dos negros? Ora, toda a gente bem sabe que temos de tratar de forma igual aquilo que é igual; mas temos também de tratar de forma diferente aquilo... que é diferente!...


Não.
Não temos de tratar de forma diferente aquilo que é diferente.

Porque,
ao contrário do que alguns parecem querer dizer, o «Princípio da Igualdade» estabelecido na Constituição Portuguesa não significa «também» que temos de «tratar de forma diferente aquilo que é diferente».

Significa exactamente que temos de «tratar de forma igual precisamente... quem é diferente».

Até por que
para além do caso que se relatou a propósito do «Apartheid» na África do Sul, são infelizmente incontáveis os exemplos que por esse mundo fora bem ilustram essa imperiosa e urgente necessidade.
A alguns nos referiremos de seguida.

Mas,
contudo, ainda antes, e dúvidas não haverá,
impõe-se nesta precisa passagem das presentes alegações que se faça uma referência à preponderante doutrina que nos chega da Dr.ª Margarida Lima Rego,
e expressa no «Parecer» para cuja totalidade desde já remetemos expressamente para o documento que a final se junta (e que, não obstante a sua relevância, só não se repete agora na íntegra por manifestas razões de economia processual, mas que aqui, ainda assim, se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).
Assim,

no seu «Parecer» (cujos sublinhados e destaques, que são feitos exclusivamente nesta citação, são exclusivamente nossos) e numa exclusiva análise dos aspectos jurídicos do problema aqui em apreço, ou seja, a restrição do casamento a duas pessoas de sexo diferente, a Dr.ª Margarida Lima Rego afirma desde logo que é a questão dos reflexos do princípio da absoluta igualdade entre homens e mulheres na concepção jusconstitucional do casamento que levam à conclusão necessária de que a referida restrição é inconstitucional.

De facto,
Margarida Lima Rego logo começa por lembrar quem defendia – e assim quase “despudoradamente” admitia – que era o próprio legislador originário do Código Civil de 1966, quem tinha concebido o casamento como «fonte de uma sociedade diferenciada (em função do sexo) entre pessoas com igual dignidade (a dignidade suprema da pessoa humana)».

Mais:
«Uma sociedade «diferenciada na medida em que atribuía ao homem «a chefia da família», e à mulher «o governo doméstico».

Como se não bastasse,
afirmava-se ainda que a descrição desta «igual dignidade» entre os cônjuges, se revia no facto de o homem «gozar do poder de decisão – ouvida a mulher e, se for o caso, os próprios filhos – nos assuntos de interesse comum».
Ora,
«esta concepção do casamento foi definitiva e radicalmente posta de parte pela Constituição da República Portuguesa de 1976,
numa evidente expressão do princípio da «absoluta igualdade entre homens e mulheres», prevista no n.º 2 do artigo 13º da Constituição,
mas também do «princípio da absoluta igualdade entre os cônjuges», estabelecida no n.º 3 do artigo 36.º da nossa lei fundamental.

Mais ainda,
Margarida Lima Rego defende uma inequívoca «expressão qualificada» do primeiro daqueles princípios, que não se limita a reconhecer a ambos os cônjuges os mesmos direitos e deveres,

Antes, sim, interditando claramente qualquer forma de discriminação jurídica entre os cônjuges.

O contrário,
seria o que resultava da «doutrina norte-americana “justificadora” da segregação racial» e que defendia a ideia de que
«a igualdade entre as raças não seria posta em causa pela manutenção do regime de separação obrigatória de brancos e negros, designadamente nos bancos das escolas, desde que houvesse uma oferta de estabelecimentos de igual qualidade para estudantes brancos e negros,
mas que mais tarde veio a acabar proscrita por decisão do Supremo Tribunal de Justiça dos Estados Unidos.
Ora,
«esta evolução teve na base uma alteração profunda na concepção tradicional de casamento, de que cumpre fazer ressaltar o afastamento da ideia de complementaridade entre os papéis desempenhados pelo homem e pela mulher no seio da instituição,
e que veio a determinar a reforma do direito da família de 1977.

Só que,
e não obstante a patente evolução conceptual,
nessa reforma «faltou actualizar a definição constante do art. 1577.º e eliminar a alínea e) do art. 1628.º do Código Civil», onde, por isso, permanece patente a sua inconstitucionalidade.

Diz-nos Margarida Lima Rego que
«o argumento central é o seguinte: a única justificação para a manutenção do requisito da distinção entre géneros no casamento está na ideia de «complementaridade» entre os papéis desempenhados pelo homem e pela mulher no casamento, afastada em definitivo pelos artºs. 13.º/2 e 36.º/2 CRP.
Porque
«dizer que duas mulheres não podem contrair casamento é afirmar que a inadmissibilidade desse casamento se funda na incapacidade de qualquer dessas mulheres nele desempenharem o papel supostamente atribuído ao homem enquanto marido.
Ora,
«esse papel deixou de existir em 1976.
De tal forma que
até Antunes Varela, ele próprio, se veria «forçado» a afirmar com manifesto pesar, sim, mas admitindo-o claramente, que aquela reforma constituíra «um ataque demolidor à família como instituição social».

É certo pois que
«independentemente da posição que se tome quanto à bondade da reforma, não há dúvida de que esta deitou por terra algumas das traves mestras sobre as quais se erigira a anterior concepção do casamento.

Mais:
a inconstitucionalidade daquelas normas do Código Civil resultaram ainda mais óbvias da última revisão constitucional «dado que o princípio da não discriminação em função da orientação sexual passou a constar (expressamente) do art. 13.º/2 da Constituição.

Por outro lado,
ainda que não se neguem «as diferenças fisiológicas que limitam a geração de vida humana, segundo o método tradicional, à união entre um homem e uma mulher,

ainda assim,
«o casamento é muito mais do que um simples veículo para a procriação» pois «basta pensar na importância social e jurídica do casamento entre pessoas em idade não fértil».
Acresce que,
«também a família se constitui de modos distintos, alguns dos quais extravasam em muito o domínio mais restrito do casamento
já que
«não é o acto de constituição de família, em especial o acto de procriar, que aqui está em causa.
De facto,
é da própria Constituição Portuguesa, no n.º 1 do seu artigo 36º,
preceito que, por fundamental, nos exige que o cumpramos à letra,
«retiramos a distinção entre os actos de:
(i) constituir família;
e de
(ii) contrair casamento.

Ora,
«uma vez que o casamento não pressupõe, nem pressupunha antes de 1976, a capacidade dos nubentes para a procriação, ou a sua intenção de procriar, qualquer distinção entre os papéis de ambos os cônjuges no casamento entronca inexoravelmente numa ideia de «complementaridade» entre os papéis desempenhados pelo homem e pela mulher no seio do casamento,
«ideia essa que é, em si mesma, injustificadamente discriminatória.

Sendo assim,
«a única conclusão a que poderá chegar-se é a da inconstitucionalidade das normas dos artºs. 1577.º e 1628.º/e) do Código Civil.
Mais ainda: o próprio Gomes Canotilho e, tal como vimos, antes dele Antunes Varela, se antes afirma que «a Constituição não admite (…) a redução do conceito de família à união conjugal baseada no casamento»,
ainda assim,
acaba por inexoravelmente, e contra si mesmo (quem sabe com quanta perplexidade), ter de admitir que «o direito a constituir família implica não apenas o direito de estabelecer vida em comum e o direito ao casamento, mas também um direito a ter filhos».
Admite, portanto, que são conceitos distintos.

Ora,
tal como Gomes Canotilho, como vimos,
«muitas são as vozes que se insurgem contra o reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo género com base no argumento de que esse reconhecimento iria desvirtuar a instituição tal como sempre a conhecemos.

Mas, efectivamente,
«o mínimo que pode dizer-se é que houve de sua parte alguma falta de atenção.
«O casamento que hoje temos já não é o que sempre conhecemos. A evolução deste instituto, enquanto acto solene bem mais recente do que muitas vezes se julga, foi feita de importantes rupturas tanto quanto de continuidade.
Pois que
«no que respeita ao problema em apreço, essa extraordinária revolução coperniciana a que se alude e que tanto se teme já aconteceu: foi em 1976!»
Ora,
e já na posse desta doutrina,
e tal como acima deixámos referido quando falámos do caso do «Apartheid» na África do Sul,
poderemos agora com outra acuidade referirmo-nos a outros exemplos que por esse mundo fora haverá, e que nos demonstram quão imperioso é para uma sociedade o esclarecimento do verdadeiro significado da palavra «IGUALDADE».

De facto, e como perfeito corolário do que se disse,
poderemos desde logo referir, por exemplo, o caso de Rosa Parks.

Com efeito,

no dia 1 de Dezembro de 1955 Rosa Parks, então com 42 anos de idade, viajava num autocarro na cidade de Montgomery no Estado norte-americano do Alabama.
Naquela ocasião, a segregação entre negros e brancos, principalmente nos Estados do Sul, era imposta com uma violência inaudita e, se alguém ousasse violá-la, ou sequer pô-la em causa, era punido com feroz severidade, muitas vezes com pesadas penas de prisão, frequentemente após indisfarçáveis sevícias policiais.
Como era de lei, os autocarros estavam divididos em duas secções distintas: atrás sentavam-se os negros, os «coloured people»; os brancos sentavam-se à frente, na secção que lhes era destinada, e que estava distintamente separava da secção dos negros por uma placa amovível para que, no caso de faltarem bancos suficientes para os brancos se sentarem, pudesse ser recuada mais para trás, assim se diminuindo os lugares sentados destinados aos negros.

Ainda assim, os brancos tinham uma espécie de «direito de preferência» sobre qualquer dos lugares do autocarro, mesmo que estivesse localizado na «coloured section».
Nesse dia Rosa Parks entrou no autocarro, pagou o seu bilhete, e sentou-se na fila dianteira dos bancos traseiros destinados aos negros. A pouco e pouco o autocarro foi-se enchendo de passageiros, até que se verificou uma situação intolerável para aquela altura e inadmissível para as leis então vigentes: estavam quatro homens brancos de pé e não havia mais bancos disponíveis.

Foi então que o motorista, de seu nome James F. Blake, (e de quem Rosa Parks se recordava perfeitamente pelo seu peculiar sentido de humor, que por vezes exercia quando, sem parar o autocarro, resolvia passar pelos negros que se encontravam nas paragens à espera, principalmente quando chovia),
decidiu mandar levantar os passageiros de raça negra que se encontravam mais à frente, para dar lugar aos passageiros brancos que estavam de pé.
Entre esse passageiros de raça negra estava precisamente Rosa Parks. Imediatamente (pois não era isso que determinava a lei?) os outros três passageiros de raça negra levantaram-se.

Mas Rosa Parks recusou-se.
E foi um autêntico escândalo.
Mais tarde Rosa Parks contou o que sentiu naquele momento:
«Quando aquele motorista branco se dirigiu para nós, na traseira do autocarro, quando ele abanou a sua mão e nos ordenou que nos levantássemos dos nossos lugares, eu senti uma determinação a cobrir todo o meu corpo, como se fosse um cobertor quente numa noite de Inverno».
«Era ali, naquela precisa ocasião que eu tinha de saber, e de uma vez por todas, que direitos é que afinal eu tinha, não só como ser humano mas também como cidadã da cidade de Montgomery, no Alabama».

A História conta-nos o que se passou de seguida:
A prisão de Rosa Parks gerou um movimento de protesto generalizado por todo o Estado e, depois, por todo o país.
Diversas organizações e movimentos cívicos organizaram um boicote aos transportes públicos até que as leis de transportes segregacionistas fossem abolidas. De entre os activistas que lutavam pelos direitos dos negros acabou por destacar-se o Dr. Martin Luther King, Jr.
Mas não foi fácil e as reacções racistas não se fizeram esperar: os negros eram espancados nas ruas, foram queimadas igrejas que eram usualmente frequentadas por negros. Uma dessas igrejas foi incendiada durante uma missa, com os fiéis no seu interior.
Morreram dezenas de pessoas. O próprio Martin Luther King seria também assassinado, já em 1968.

A atitude de Rosa Parks é hoje unanimemente considerada como a primeira das causas que levaria – mas somente décadas mais tarde – à valorização dos direitos humanos e, finalmente, ao cumprimento rigoroso dos princípios de igualdade inscritos na precursora Constituição Americana e, assim, à completa e definitiva erradicação, em toda a União, das leis racistas e segregacionistas que ainda hoje, quando recordadas, envergonham a grande e esmagadora maioria dos cidadãos americanos.

Mas não é tudo:
Entretanto Rosa Parks, chamada a polícia, foi presa e submetida a julgamento, que se realizou quatro dias depois, acusada de um crime que todos os tribunais do Estado consideravam tão horrendo quanto era, de facto, muito pouco vulgar naquela época:
- Uma mulher negra (e logo uma mulher!) atrevera-se a pôr em causa as leis segregacionistas americanas.

Tal como já se esperava, depois de um julgamento de cerca de 30 minutos, Rosa Parks foi condenada a pagar uma multa de 10 dólares, mais 4 dólares de custas judiciais (uma quantia ainda relativamente elevada para a época).
Rosa Parks recorreu da sentença.
A fundamentação do seu recurso baseava-se fundamentalmente na inconstitucionalidade das leis racistas e fanaticamente segregacionistas, por contradição com o «Princípio da Igualdade» prescrito na Constituição dos Estados Unidos da América.
Mas o recurso foi recusado.
A fundamentação judicial do indeferimento do recurso não poderia ser mais explícita:
- a lei tratava de forma diferente, segregava e discriminava os cidadãos negros americanos, reconheceu-se;
- a Constituição americana, concordou-se também, estabelecia indiscutivelmente o «Princípio da Igualdade», independentemente da raça, sexo, credo, religião, etc.

Mas,
ainda, assim foi considerado na sentença que, como era óbvio, Rosa Parks era uma cidadã, sim, “mas”... de raça negra.
E uma pessoa negra, Rosa Parks não podia discordar, era inegavelmente uma pessoa... «diferente».
E então a condenação de Rosa Parks permaneceu irrevogada.
Porque, «como toda a gente sabia perfeitamente», o «Princípio da Igualdade» significa também que... se deve tratar de forma diferente aquilo que é diferente...

Como parecem distantes estes acontecimentos, mas como eles nos estão, afinal, ainda tão próximos.
E como ao mesmo tempo nos parece tão inacreditável que, há tão pouco tempo ainda, numa Democracia, num país de civilização ocidental, sob uma “perfeita” cobertura legal, se segregavam e discriminavam abertamente os cidadãos pela cor da sua pele.
E como nos parece hoje tão incrível que pudesse ter algum dia havido uma «justificação legal» para leis tão desumanas e injustas, mas que até o próprio poder judicial (o que pensamos hoje disso?)
a subscrevia, interpretando também o «Princípio da Igualdade» da Constituição Americana como significando que... se pode tratar de forma diferente... aquilo que é diferente.

Mas,
O que é certo,
é que se poderiam aqui ainda citar muitos e muitos mais exemplos desta persistência discriminatória de quem não tolera «a diferença» dos seus concidadãos. E de quem usa essa própria diferença como uma espécie de pretexto para justificar um tratamento diferenciado e discriminatório a esses cidadãos, estejam eles ou não no pleno gozo dos seus direitos civis, sociais ou políticos.

Contudo,
Bastará recordarmo-nos aqui, de Emmeline Pankhurst,
que viveu entre 1858 e 1928, e cujo nome é, mais do qualquer outro, automaticamente associado à luta das mulheres pelo reconhecimento dos seus direitos civis, e aos movimentos e organizações que defendiam a plena igualdade de direitos das mulheres, incluindo também o seu próprio direito a votar, motivo por que todas essas mulheres ficaram conhecidas por «sufragistas».

Também Emmeline Pankhurst foi presa diversas vezes, juntamente com as suas mais célebres companheiras activistas, Annie Kenney, Emily Davison e Ethel Smyth.
Numa ocasião, quando estava presa decidiu fazer uma greve de fome, tendo sido agredida e brutalmente alimentada à força.
Quando morreu, em 1928, Emmeline Pankhurst tinha atingido muitos dos objectivos da sua luta, incluindo o reconhecimento do direito de voto às mulheres no Reino Unido.

Mas,
durante os anos e anos que dedicou às suas causas Emmeline Pankhurst sempre foi sistematicamente confrontada com o mesmo e persistente tipo de argumentos:

Porque queriam as mulheres o direito de votar?

Mas não viam as «sufragistas» que o voto é uma «instituição» que sairia desvirtuada e «desfigurada no seu núcleo essencial» se o direito a votar fosse estendido às mulheres?...
Pois não tinha sido o voto originalmente pensado e «instituído» para ser exercido somente por homens?
E assim não tinha sempre sido, ao longo da História?
E por que motivo persistiam as «sufragistas» nesse argumento vazio de qualquer sentido neste caso, como é o «Princípio da Igualdade» que, se impede a discriminação entre os cidadãos, também, e ao mesmo tempo, significa, claro está que... se tem de tratar de forma diferente... aquilo que é diferente.

Mas não é óbvio que as mulheres são «diferentes» dos homens?...


Ora,
é precisamente aqui que não resistimos a citar novamente o Professor Júlio Machado Vaz de quem, e das suas «Declarações», uma vez mais com toda a ênfase, destacamos:
«Ouço muitas vezes reivindicar soluções diversas para realidades diversas.
«Pois bem, estou firmemente convencido que existem muito mais diferenças entre as faces da instituição casamento separadas pelos últimos cento e vinte anos, do que entre os cidadãos heterossexuais, homossexuais e bissexuais, rótulos que apenas traduzem a nossa triste e preguiçosa nostalgia de melhor catalogar o mundo, ainda que no processo sacrifiquemos as cores do arco-íris ao simplismo do preto e branco.
«É tempo de substituir uma palavra tão oblíqua como tolerância pela prática fraternal da aceitação da diversidade que, biológica e psicologicamente, nos garante e enriquece o futuro».

De facto, eloquente.

Numa palavra,
é um completo absurdo defender que o «Princípio da Igualdade», tal como vem proclamado no artigo 13º da Constituição Portuguesa, ao mesmo tempo que exige que se trate de «forma igual aquilo que é diferente»,
contém também como que uma espécie de corolário constitucional de que «também» temos de «tratar de forma diferente aquilo que é diferente».
E isso não é só absurdo:
é também, e muito principalmente, muito perigoso.

Mas atenção:
não se defende aqui que «tratar de forma desigual quem é desigual» não tenha qualquer espécie de cabimento ético, legal ou constitucional.
Isso seria... igualmente absurdo.

Tê-lo-á, sim,
como acima se deixou de forma clara suficientemente explicado,
mas unicamente, e somente nesse caso, se isso corresponder a uma consagração ou a uma formulação POSITIVA.
Ou seja, e como se disse a ninguém repugnará a atribuição de um subsídio estatal a uma família desfavorecida ou a concessão de um benefício fiscal a um cidadão deficiente.
Isso sim,
é uma forma de «tratar de forma diferente quem é diferente», e é, sim, uma forma de discriminar,
mas é também, como é por demais óbvio, uma distinção, uma discriminação que é feita de forma humana, ética, materialmente racional,
isto é, de forma constitucionalmente lícita,
porque é feita... positivamente.

É uma «discriminação» que dá, que concede, que atribui, que reconhece, que sobreleva.
Não é, seguramente,
uma «discriminação» que retira, que recusa, que despreza, que minimiza, que esmaga, que ridiculariza, que amesquinha.

De facto,
bem diferente será o estabelecimento de uma formulação ou de uma distinção negativa, que distinga ou discrimine alguns ou determinados cidadãos e, em razão da sua raça, credo, sexo ou orientação sexual, lhes restrinja ou negue direitos que a outros anteriormente não negou,
ou que não lhes atribua e garanta direitos que a outros anteriormente... já concedeu.

Assim,
é precisamente nesta passagem destas alegações que se impõe uma vez mais o esclarecimento do quanto, a propósito da particular especificidade do que sem vem opinando, tem já constituído jurisprudência unânime desse Tribunal Constitucional.
Deste modo,
não poderia aqui deixar de caber uma especial referência ao quanto tão elucidativamente vem considerado no acórdão n.º 351/05 do Tribunal Constitucional que, com a devida vénia, uma vez mais citamos:
«O n.º 2 do artigo 13° da Constituição da República Portuguesa enumera uma série de factores que não justificam tratamento discriminatório e assim actuam como que presuntivamente – presunção de diferenciação normativa envolvendo violação do princípio da igualdade – mas que são enunciados a título meramente exemplificativo.
(cf., v. gr., os Acórdãos nºs. 203/86 e 191/88, na esteira do parecer nº 1/86 da Comissão Constitucional).

«A intenção discriminatória em situações como a presente, não expressamente aludida naquele catálogo, não opera, porém, automaticamente, tornando-se necessário integrar a aferição jurídico-constitucional da diferença nos parâmetros finalísticos, de razoabilidade e de adequação pressupostos pelo princípio da igualdade.
«Importa, a esta luz, decidir se a normação em causa é materialmente fundada ou, pelo contrário, se mostra inadequada, desproporcionada e, no fim de contas, arbitrária".
«Será, pois, de acordo com esta doutrina que se apreciará a alegada violação do princípio da igualdade, não deixando, desde já, de salientar alguns traços da concepção do princípio que vem sendo adoptada e que, no caso, são especialmente convocáveis.
«Assim:
«– O diferente tratamento jurídico de situações de facto essencialmente iguais só pode assentar em razões que, objectivamente, assentem em valores constitucionalmente relevantes;

E é então, nesta conformidade,
que no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 351/05 se faz uma consideração e se chega a uma conclusão que não poderiam ser mais expressivas:
«– O referencial que há-de servir para a comparação das situações fácticas e jurídicas em confronto nunca poderá traduzir-se em qualquer um dos factores enumerados no artigo 13°, n.º 2, da Constituição Portuguesa».
...
«Ora, como princípio e direito fundamental que tem (também) como destinatário o legislador, o princípio da igualdade vincula esse mesmo legislador na formulação do conteúdo das normas penais.
«A propósito, escreveu Rui Pereira ... que "quando se afirma que a lei penal se funda na Constituição em sentido material, pretende significar-se que todas as normas constitucionais, a começar pelas que estabelecem o regime de direitos liberdades e garantias, na medida em que exprimem opções axiológicas fundamentais, devem ser consideradas pelo legislador penal (...).
(...)

«Constituindo a legislação penal um domínio em que o respeito pelo direito à liberdade é mais directamente posto à prova e cabendo ao legislador a escolha, no quadro constitucional, das condutas merecedoras de sancionamento penal (...),
compreende-se, de resto, o papel fundamental do princípio da igualdade, onde a consideração de vários direitos e liberdades em presença, frequentemente conflituantes, impõe soluções de complexa harmonização.

«Também neste domínio (...) o Tribunal Constitucional tem aferido a constitucionalidade de normas (penais) perante aquele princípio. Fê-lo, entre outros, nos Acórdãos nºs 370/94 e 958/96.
«E deles há que especialmente evidenciar o repúdio de diferenças baseadas em critérios de valor meramente subjectivos e a identificação da proibição do arbítrio com discriminações não devidamente justificadas nas especialidades fácticas de imediato significado valorativo "compatível com o quadro de valores constitucionais"».

Por outras palavras,
e do mesmo modo,
será também muito “diferente”, então, adoptar uma espécie de «slogan» com palavras mais ou menos cacofónicas e de formulação mais ou menos sonante e dizer:
- Temos de tratar de forma diferente aquilo que é diferente!
E esperar que as pessoas achem tudo isto uma proclamação pejada de razoabilidade e dotada de uma inegável lógica intrínseca.
Quando, pelo que vimos, não o é.

Mas mais:
Dizê-lo é também esperar que as pessoas não se apercebam que quem defende que «tratar de forma diferente aquilo que é diferente» corresponde de facto a uma consagração constitucional,
é, também, e precisamente naquilo em que se baseia quem pretende, defende e proclama política ou filosoficamente a distinção e a discriminação entre os diferentes cidadãos,
seja qual for a razão invocada,
mas sempre com o fundamento na sua... diferença.
Pois,

defender que «temos de tratar de forma diferente aquilo que é diferente» sem um critério axiológico incontestavelmente conforme com os ditames constitucionais, ou fora do âmbito de uma formulação positiva,
é não só comungar da mesma fundamentação filosófica e pretensamente ética em que se baseiam todas as discriminações,
como, e muito principalmente,
é abrir a porta à concretização dessas ou de novas discriminações que, uma vez mais, e sempre, pretendam basear-se na distinção dos cidadãos quando eles sejam... diferentes.

Porque,
não deixa de ser certo que em Portugal, os cidadãos homossexuais continuam a ser apontados a dedo, humilhados, insultados e ainda tão frequentemente discriminados,
nas ruas, nas escolas, nos empregos...
que, precisamente por isso, muitos nem sequer se atrevem a, como é agora usual dizer-se «sair do armário», e viver em liberdade a sua vida, as suas valorações e opções éticas, políticas, filosóficas, religiosas e, também, a sua orientação sexual,
sem constrangimentos, sem traumas, sem perseguições e se, enfim, quaisquer discriminações.

Contudo,
é bem verdade que em Portugal ainda lemos nos jornais notícias como a do «Caso Gisberta», uma cidadã transexual que foi durante dias e dias impiedosamente agredida e seviciada por um grupo de rapazes, adolescentes, crianças ainda, fugidos à calada da noite de uma instituição de acolhimento,
até que, já fartos da «brincadeira», simplesmente decidiram um belo dia espancá-la pela última vez, mas desta vez até à morte,
atirando-a depois, moribunda, mas ainda viva, para um poço ali próximo, onde viria a morrer afogada, no meio da maior agonia.
A inimputabilidade penal que a juventude traz consigo encarregou-se de deixar impunes e até praticamente incólumes estes rapazes.
Não tem constado das notícias o paradeiro deste jovens, ou se alguém deste país se tem, agora, encarregue de lhes ensinar os valores éticos da cidadania e de lhes mostrar o quanto estes valores estão distantes da homofobia e da discriminação.
Nem sequer se sabe se lhes está a ser ensinado de que forma devem ser tratados todos os cidadãos. Mesmo aqueles que são... «diferentes».

No entanto,
é à sociedade no seu conjunto, é a todos nós,
mas em particular aos poderes públicos, aos órgãos de soberania, do Governo e da Assembleia da República até aos Tribunais,
até ao Tribunal Constitucional,
que compete demonstrar no dia a dia, e todos os dias, até em cada acto que praticamos, e em cada decisão que tomamos, seja ela política, legislativa ou jurisdicional, que é tomada,
que Portugal é um Estado de Direito Democrático que não admite, nem nunca mais admitirá, qualquer forma de diferenciação negativa e, por isso, de discriminação, entre os seus cidadãos, seja qual for a razão da sua diferença, e seja qual for, enfim, a sua... orientação sexual.

E essa é, de facto,
uma obrigação ética, um dever de cidadania que a todos nós, portugueses, compete, e que deve ser exercido quotidianamente, sem excepção, em cada um dos dias das nossas vidas.

Em suma,
Nenhuma razão assiste ao Exmº. Senhor Conservador da 7ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa para ter despachado a recusa da pretensão das recorrentes de contraírem matrimónio uma com a outra,
como nenhuma razão assistiu às instâncias ordinárias que sucessivamente deram provimento a tal recusa.

De facto,
constando a fundamentação de tal recusa na definição do contrato de casamento constante do artigo 1.577º do Código Civil, que contém a exigência dos nubentes serem «de sexo diferente», e também no teor da alínea e) do Código Civil, que fere de inexistência jurídica o casamento celebrado entre duas pessoas do mesmo sexo,
e sendo tais normas claramente inconstitucionais,
deveriam o Exmº. Senhor Conservador, primeiro, o Mmº. Juiz da 1ª instância de seguida, ou o acórdão da Relação de Lisboa depois, ter admitido a realização do casamento das ora recorrentes.

Pois, pretender o contrário,
significaria aceitar uma sociedade que quer tapar o Sol com uma peneira e varrer para debaixo do tapete uma parte dos seus cidadãos, só porque nasceram com uma orientação sexual “diferente da dos cânones oficiais”.
Aceitar este argumento, significaria não mais do que dizer a esses cidadãos que uma coisa é poderem existir, viver uns com os outros em comum e em liberdade, sim,
e até em família,
mas outra coisa seria ser-lhes reconhecido o direito a atribuírem força e forma legal a essa união tal como é possibilitado aos demais cidadãos,
por exemplo para assegurarem mutuamente direitos sucessórios, de pensões de sobrevivência, de comunhão patrimonial, de valoração jurídica aos compromissos morais consubstanciados nos deveres conjugais, etc., etc.

Por outras palavras,
seria permitir-lhes uma vivência meramente de «faz de conta», mas destituída de qualquer força e consequências legais,
unicamente pelo simples facto de... serem do mesmo sexo.

Se as instâncias se opuseram claramente, e muito bem, a quaisquer discriminações arbitrárias, injustas e irrazoáveis,
deveriam, por isso mesmo ter também reconhecido que é inequivocamente arbitrário, injusto e irrazoável, isso sim, impedir o acesso a duas pessoas, só porque são do mesmo sexo, à celebração de um contrato de comunhão de vida que lhes confere consequências patrimoniais e não-patrimoniais que desejam ver incluídas nas suas esferas jurídicas,
ao mesmo tempo que lhes confere o direito de viverem juntas, e até... «em família»...
...embora em silêncio, escondidas, e «sem fazerem ondas».


Ora,
é aqui que cabe uma especial referência à opinião do Dr. Luís Duarte d’Almeida,
expressa no «Parecer» para cuja totalidade remetemos para o documento que a final se junta (que, pela sua relevância, só não se repete na íntegra por manifestas razões de economia processual, mas que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).
Assim,
no seu «Parecer» que intitula «Casamento Civil e “Sexo Diferente”» - cujos sublinhados e destaques (que são feitos exclusivamente nesta citação e não no texto original junto a estas alegações ) são exclusivamente nossos - o Dr. Luís Duarte d’Almeida diz-nos o seguinte:

«O argumento da igualdade (...) é apenas um argumento bastante no sentido da inconstitucionalidade, e não um argumento necessário:
«as normas expressas pelos artigos 1577.º e 1628.º, alínea e), do Código Civil falham também o teste da compatibilidade com princípios constitucionais como o que garante o desenvolvimento da personalidade e a reserva da intimidade da vida privada (art. 26.º da Constituição), ou mesmo, pressupostos certos modelos de reconstrução dogmática do regime jurídico do casamento, o da garantia da liberdade de religião (art. 41.º da Constituição).
E depois:
«É expressiva (...) a desproporção quantitativa entre os estudos que denunciam a incompatibilidade daquela desigualdade com as exigências fundamentais de uma democracia constitucional (e que são quase todos) e os que procuram justificar a discriminação (meia dúzia, ou pouco mais).
«Neste último conjunto, os proponentes de “argumentos” pró-discriminação não têm querido tomar em consideração, como dado essencial para a própria discussão do tema, a existência efectiva de muitos casais compostos por pessoas que não são de “sexo diferente”. Percebe-se a inconveniência.
(...)
«O casamento — “fonte” de “relações jurídicas familiares”, segundo o art. 1576.º do Código Civil — importa para a titularidade de cada cônjuge um conjunto amplo de posições jurídicas subjectivas activas e passivas, determinadas em parte pelos artigos 1671.º e seguintes do Código Civil. Deste conjunto, as posições jurídicas activas de ambos os cônjuges face a terceiros representam benefícios muito variados e nada despiciendos.
«a exclusão de casais que não sejam compostos por “duas pessoas de sexo diferente” do acesso a esses benefícios constitui a mais evidente consequência da discriminatória “noção de casamento” dada no art 1577 do C. Civil..»
De facto,
«esse argumento a partir dos benefícios tangíveis tem tomado primazia nas discussões acerca da ilegitimidade... de uma vedação da instituição do casamento a pessoas que não sejam de “sexo diferente”. Mas não se esgota com isso, naturalmente, o panorama da discriminação.
«De um lado, o casamento representa, enquanto instituição jurídica e social, um modo infungível de expressão do compromisso afectivo e amoroso entre duas pessoas.
«Do ponto de vista dos cônjuges, isso há-de ser levado também à conta de benefício intangível, sem deixar por isso de ser considerado, de um ponto de vista jurídico, tão ou mais relevante do que aqueles outros...

Quanto a este particular, diz-nos ainda Luís Duarte d’Almeida:
«[A] discriminação promovida pelos artigos 1577.º e 1628.º al. e) do Código Civil deixa-se examinar também do lado dos deveres resultantes do casamento. Quanto aos deveres conjugais, o rol das posições jurídicas passivas constante do art. 1672.º do Código Civil é evidentemente reciprocado pelas correlativas posições jurídicas activas de cada cônjuge face ao outro.

«Justificam-se estas, no discurso jurídico mais corrente, como satisfação ou concretização do comando constitucional de protecção do casamento e da família (art. 36.º da Constituição); é protecção não concedida a casais que não correspondam à “noção” da lei civil. E no que respeita, enfim, a deveres que vinculem os cônjuges face a terceiros ao casal, sobressaem aqueles de que sejam credores os filhos: e neste caso são os filhos de casais não compostos por pessoas “de sexo diferente”... as vítimas do tratamento discriminatório resultante da delimitadora “noção” dos artigos 1577.º e 1628.º, alínea e), do Código Civil.

Então, e mais importante,

«As consequências prejudiciais da subtracção dessas crianças à protecção a que (por força também do artigo 67.º da Constituição) deveriam ter direito são, em diversos níveis, evidentes.

E quanto às posições “jusnaturalistas” que se opõem ao casamento entre pessoas do mesmo sexo:
«Os partidários deste jusnaturalismo contemporâneo (...) não deixam de assumir expressamente que os seus argumentos contra o reconhecimento jurídico, em condições de igualdade, de casais compostos por pessoas que não sejam de “sexo diferente” radicam num pressuposto de inferioridade moral quer das relações afectivas desses casais,
«quer mesmo (...) de qualquer relação ou expressão de sexualidade que não satisfaça, conjuntamente, os testes da maritalidade em sentido “próprio” e o da potencialidade procriadora.

Ora,
«Uma vez que esses autores pretendem, em simultâneo, adscrever valor moral ao casamento heterossexual “tradicional” ainda que os cônjuges sejam, por uma razão ou outra, incapazes de procriar, há inconsistência interna nas suas posições;
Mas mais:
«interessa, sobretudo, discutir a serventia jurídica de teses que dependam da atribuição ao casamento heterossexual de um valor moral intrínseco de que não participam quaisquer outras formas de união afectiva, já que aqueles autores pretendem aliar as suas concepções morais acerca do casamento à prescrição, dirigida ao legislador e aos órgãos estaduais, de uma missão protectora dessas mesmas concepções;
«interessa, pois, mostrar que essas teses são imprestáveis quando se trata de esgrimir argumentos normativos atendíveis acerca das soluções que devem ser adoptadas por legislação no contexto de um Estado constitucional democrático e pluralista.

E, quanto a isto,
«uma suposta “natureza” do casamento como instituição “intrinsecamente heterossexual” não pode ser pressuposto nem da delimitação legislativa da figura, nem da reconstrução jurisprudencial do respectivo regime: as proposições de alguma doutrina ou ideologia moral, mais ou menos dominante ou controvertida, não fornecem fundamento idóneo para a delimitação dos direitos e das liberdades fundamentais numa democracia constitucional — que impõe a neutralidade pública face a todas as possíveis compreensões morais do casamento, e veda a imposição legislativa de qualquer dessas compreensões a todos os cidadãos.

Então
«...a recusa de casamentos entre pessoas que não sejam de “sexo diferente”, uma vez que não cumpra (como não cumpre) um papel de concretização de algum interesse público fundamental (como o da protecção da família, por exemplo), tem de ser vista como expressão de alguma “concepção moral abrangente”.
«...Não cabe ao Estado, numa democracia constitucional, investir-se no papel de guardião fafneriano de alguma concepção moral abrangente;
«e, no que respeita ao casamento, impõe-se a preservação da neutralidade do regime jurídico da lei civil perante quaisquer concepções acerca de supostas “naturezas” do instituto.

Mais:
«Convenientemente separados o plano da discussão moral e o plano da discussão da extensão da protecção constitucional dos interesses dos cidadãos, o casamento emerge, do ponto de vista jurídico, como um construto jurídico-constitucional — e não como “reconhecimento” de qualquer “realidade” ou “essência” pré-jurídica ou pré-constitucional.
De facto,
«A ideia de que haveria auto-contradição na noção de casamento entre duas pessoas que não sejam “de sexo diferente” depende da postulação de um tal conceito pré-jurídico de casamento e, portanto, desse inaceitável enxerto de visões morais ou religiosas particulares no trabalho da dogmática e da teoria jurídicas e jurídico-constitucionais:
«uma definição propriamente jurídica do casamento, como é evidente, é compatível com qualquer extensão da “noção” de casamento que preserve a conformidade com os princípios da Constituição.
(...)
Para além disto,
«Esses teóricos jusnaturalistas, confrontados com as evidentes objecções à impossibilidade de demonstrar razoavelmente o valor moral exclusivo do casamento heterossexual de função procriadora, se viram já forçados a reconhecer a irracionalidade do seu argumento, buscando refúgio na fé e, enfim, nessa “tradição jurídica e religiosa” que consideram ser prova bastante da verdade das suas concepções.

Contudo,
«o campo da discussão de constitucionalidade, que é o da razão pública, exclui em absoluto o que provenha do acesso a esse domínio da “compreensão” irracional;
«e, por outro, essa costumeira invocação da “tradição” do casamento, muitas vezes carreada em apoio da discriminação legislativa de casais compostos de pessoas que não sejam de “sexo diferente”, é erro grosseiro que, no vulgar discurso do preconceito pretensamente “informado”, se apoia em perigosas leituras literais, e muito selectivas, de certas passagens infames da Bíblia (...). Mas também esse erro está hoje denunciado em estudos extensos e aprofundados: assenta em concepções do que seja a “herança” judaico-cristã que resultam de simples ignorância da história do casamento, e confundem isso a que chamam “tradição” com mundividências que são afinal “herdadas” de um passado recentíssimo.

Depois,
«ainda que fosse plausível a reconstrução do regime civil do casamento exclusivamente como expressão de um interesse público na perpetuação biológica da espécie e na protecção do percurso de criação de filhos (por se entender, porventura, que o casamento proporciona um ambiente preferencial para essa criação), permaneceria sem fundamento a discriminação de casais compostos por pessoas que não tenham “sexo diferente”:
«assim como a maternidade e a paternidade não dependem da procriação biológica em sentido estrito também a procriação biológica no mesmo sentido estrito é hoje, em vista do progresso e da generalização das técnicas de reprodução, absolutamente independente da consumação do acto sexual entre um homem e uma mulher.

Para mais,
«...pode ainda notar-se que certos preconceitos segundo os quais o casamento entre pessoas que não tenham “sexo diferente” seria de algum modo prejudicial às crianças do casal estão bastante desmentidos no campo das ciências sociais.
(...)
Por outro lado,
«Se o cerne da relação conjugal, tal como configurada pela lei civil, se encontra naquele compromisso afectivo, estreito e duradouro entre duas pessoas, o direito a contrair casamento é um direito das pessoas enquanto pessoas.
Por força do comando constitucional de igualdade, assim, a concessão desse direito tem de alhear-se em absoluto do facto de os cônjuges serem, ou não, de “sexo diferente”,
«exactamente pela mesma razão por que deve ser irrelevante, por exemplo, que os cônjuges sejam de raça igual ou diferente, da mesma condição socio-económica ou de condições diversas, ou que convirjam ou divirjam em convicções político-ideológicas.

Pois,
«Para efeitos do direito a contrair casamento (como para muitos outros efeitos, felizmente), tudo isto é tão irrelevante como o diferente sexo dos cônjuges: a discriminação decorrente dos artigos 1577.º e 1628.º, alínea e), do Código Civil implica a negação do acesso ao instituto e aos benefícios do casamento por parte de casais que o desejem, e que constitucionalmente merecem e carecem da mesma protecção;
«é arbitrária e, portanto, inconstitucional.

De facto, essa discriminação
«opera em razão do sexo, e não da “orientação sexual”: o género (masculino ou feminino) do cônjuge é condição necessária da discriminação, o que não sucede com a orientação sexual.

Mas,
«o alcance da discriminação, e, portanto, o alcance da inconstitucionalidade das normas expressas pelos artigos 1577.º e 1628.º, alínea e), do Código Civil por violação do princípio de igualdade pode ser ainda mais aprofundado se se prestar alguma atenção aos casos (menos mediatizados, é certo, mas não menos importantes) das pessoas transexuais.
É que
e tal mereceu já dignidade de consagração jurisprudencial do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (no célebre acórdão Goodwin),
no reconhecimento a uma pessoa transexual (depois de uma mudança cirúrgica de sexo), o direito ao casamento com outra pessoa do mesmo sexo biológico determinado à nascença,
o que só demonstra uma vez mais que toda esta questão relacionada com a incompreensível recusa de casamentos entre pessoas que não sejam de “sexo diferente” é também, sem dúvida, uma questão que tem de ser conexionada com o mais básico respeito pelos direitos humanos dos cidadãos,
pois que,
«A categoria da transexualidade determina-se em razão da identidade sexual, e não da “orientação”;
«e não é discutível que o artigo 13.º da Constituição proíba também a discriminação de pessoas por causa dessa identidade.
Mas mais até se pensarmos que:
«...a própria constrição destas pessoas [transexuais] à adopção juridicamente permanente de um dos dois “géneros” pode ser tida como potencialmente atentatória da sua dignidade pessoal....

Ou seja:
«Em geral, o desejo de uma pessoa integrar uma união familiar em “plena comunhão de vida” com outra pessoa não depende do sexo de nenhuma das duas; o amor por alguém não depende da diferença de sexo, e isto é um facto que a lei não decreta nem logrará proibir alguma vez.
Mas,
Mais do que isso,
«o “sexo” ou o “género” não são constitutivos do conceito juridicamente relevante de pessoa,
«e o direito a contrair casamento configura-se constitucionalmente como um direito das pessoas.

Numa palavra,
«A discriminação decorrente da lei civil, violando o princípio de igualdade, viola também, por conseguinte, o princípio de respeito pela dignidade da pessoa humana.

Finalmente,
e como co-relacionamento das opiniões acima expendidas, Luís Duarte d’Almeida conclui o que do seu «Parecer» destacamos:

«É bem possível que na origem das disposições dos artigos 1577.º e 1628.º, alínea e), do Código Civil se esconda o mesmo tipo de preconceito que, esgotado o debate, ressuma das posições de quem se opõe a que o casamento seja juridicamente configurado como direito das pessoas, e não apenas de quem queira participar de uniões com alguém de “sexo diferente” — e que é o preconceito contra a homossexualidade.
«Não é difícil desocultá-lo: é o que sobeja, uma vez descontados os maus argumentos.
«...é preciso sublinhar que o preconceito anti-homossexual exprime uma sexualização (ou uma genitalização, no vocabulário mais garrido que cultivam os académicos dos gender studies) da comunhão de vida entre pessoas do mesmo sexo que, pura e simplesmente, não é sequer chamada à discussão do problema.
«A repulsa “moral” pela homossexualidade, muitas vezes aliada a entendimentos sectários acerca do modo como as pessoas “devem” ou “não devem” ser ou agir, é o que verdadeiramente subjaz às estratégias do discurso pró-discriminação, que buscam impor a todos este ou aquele modelo ou parâmetro de “correcção” moral.
«A discussão de questões como esta tem-se mostrado particularmente atreita à colonização por “argumentos” que, travestidos de “jurídicos”, são expressão apenas de uma intolerância irracional.

De facto,
«há muito quem afirme que com admissão do casamento entre pessoas do mesmo sexo se “abriria a porta” ao incesto, à poligamia, às relações sexuais com girafas e pandas.

Contudo,
o que é verdade é que
«há algumas décadas, muito curiosamente, a porta de entrada para este armagedão era outra: era a admissão do casamento inter-racial.
«O armagedão não veio; mas a comparação é educativa.

Ou seja,
«...o contexto constitucional português não tolera que as leis se nutram de preconceitos acerca do “valor” ou da “normalidade” das pessoas ou das relações homossexuais.

Aliás,
«O Tribunal Constitucional português, aliás, já sustentou que
«os direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, postulados pelo respeito da dignidade da pessoa humana, traduzem-se no direito dos cidadãos à sua auto-realização como pessoas, onde se compreende o direito à autodeterminação sexual, nomeadamente enquanto direito a uma actividade sexual orientada segundo as opções de cada um dos seus titulares. […]
«[Uma norma restritiva de direitos constitucionalmente protegidos não pode “ter, como sua verdadeira razão de ser, uma concepção de desfavor relativamente à orientação sexual em causa, ou — o que é o mesmo — fundamentos de cariz subjectivista, sociológicos ou outros, constitucionalmente imprestáveis para justificar a desigualdade. […]
«[Parâmetros de normalidade/anormalidade, extraídos, aparentemente, de uma observação "estatística" da sociedade, afiguram-se imprestáveis para justificar a diferença de tratamento jurídico, face aos artigos 13º, nº 2, e 26º, nº 1, da Constituição. […] [É constitucionalmente inadmissível] um juízo de desvalor, pejorativo, da prática sexual (homossexual) […] na base da qual se pretenda justificar a diferença de tratamento jurídico.

Em suma,
conclui Luís Duarte d’Almeida no seu «Parecer» que:
«As disposições dos artigos 1577.º e 1628.º, alínea e), do Código Civil exprimem juízos de inferioridade moral sobre o amor homossexual e sobre a qualidade das famílias constituídas por duas pessoas do mesmo sexo;
«vedando o acesso ao casamento a pessoas que não sejam de “sexo diferente”, infringem o direito fundamental a contrair casamento também na sua dimensão de direito de uma pessoa a escolher com quem quer casar.

Numa palavra:
«A consequente discriminação é atentatória dos princípios fundamentais de dignidade da pessoa e humana e de igualdade.
«Aquelas disposições da lei civil portuguesa são claramente inconstitucionais».
Ou seja, e porque uma coisa é certa:
independentemente do que se defenda que a Ordem Jurídica portuguesa estabelece de facto e em concreto e, por isso, independentemente da legalidade ou não das decisões tomadas até agora nestes autos,
não há, de facto, nenhum motivo para uma sociedade moderna e democrática, como não há qualquer razoabilidade para, em Portugal, se impedir que duas pessoas do mesmo sexo se associem numa união familiar, para “constituírem família em plena comunhão de vida”,
isto é, para se impedir que celebrem um contrato de casamento,
com isso buscando quer as consequências de ordem pessoal quer as consequências de ordem patrimonial que do mesmo advêm,
até porque isso representa não mais do que reconhecer, como o fez o Mmº. Juiz da 1ª instância, que «a sociedade está em constante mudança».
Ora,
se, de facto, se reconhece que não existe qualquer razoabilidade para tal proibição, o que é facto é que não a reconhecer na Ordem Jurídica é, antes de mais, defender a irrazoabilidade da própria Ordem Jurídica.
O que seria um absurdo.

Até por que
a Constituição da República Portuguesa é, na formulação dos Direitos Liberdades e Garantias que confere aos cidadãos, uma das mais avançadas do mundo.
Já o era, até, aquando da formulação original da redacção do n.º 2 do seu artigo 13º., e muito mais o é agora, quando o legislador constitucional quis expressamente incluir nessa formulação a expressão «ou orientação sexual».

Ora,
será essa inclusão inútil e destituída de sentido?
Decerto que não.

Então,
para que servirá tal formulação constitucional, que não para reconhecer aos cidadãos que, em função da sua orientação sexual, isto é, pelo facto de serem homossexuais, pretendem associar-se familiarmente com pessoas que serão, obviamente e por isso mesmo, do mesmo sexo?

A resposta só poderá ser uma:
- Impedir o acesso à celebração de um simples contrato de natureza civil a duas pessoas só porque estas são do mesmo sexo é, inequivocamente, inconstitucional.

Mas mais:
Se o «Direito» é (também) um conjunto ou um sistema de normas de conduta, determinado definido e imposto por um conjunto de instituições estaduais para tal competentes, e que se destina a regular as relações sociais,

então,
o «Direito» (ou aqui também a «Ordem Jurídica») será pois, também, a ponderação dos valores que determinam e o complexo normativo que objectivamente o caracterizam, e que resulta de critérios culturais, de ética, de racionalidade, de materialidade, de civilização, etc., e até das necessidades que se revelarem exigíveis para a defesa de todos esses critérios e valores.
Ora,
e assim sendo, e se estivermos perante um verdadeiro «Estado de Direito», vinculado, por isso, ao «império da Lei»,
que terá sido, obviamente, democrática e regularmente estabelecida, então o «Direito» constitui também a solução «legal», para os conflitos que resultem de quaisquer confrontos entre as valorações ou os critérios que, eles próprios definiram e caracterizaram esse mesmo «Direito».

Assim sendo,
caberá aqui naturalmente esta questão:
Se aqui está em causa, basicamente, a juridicidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo,
e digladiando-se argumentos sem fim em ambos os sentidos:
- quer no sentido da possibilidade legal desse casamento,
- quer também no sentido de que a norma civil que o impede não é constitucionalmente desconforme,

então,
e a caminho de uma decisão sobre a correcção, isto é, sobre a legalidade de uma das duas opções
deveria, antes de mais,
e previamente a qualquer escolha que se faça sobre uma delas,
encontrar-se quais os valores jurídicos que uma e outra posição pretendem ver defendidos e assegurados
e, simultaneamente,
encontrar-se que valores jurídicos poderiam vir a ser prejudicados ou desrespeitados por força dessa mesma escolha.

Assim,
que valores jurídicos pretenderão as Recorrentes verem ser-lhes assegurados com o reconhecimento da desconformidade constitucional das normas do Código Civil que lhes vem impedindo o direito a casarem-se?
Como é óbvio e acima se deixou explícito,
casando-se, pretenderão as Recorrentes assegurar o acesso um conjunto de direitos e garantias de inúmera ordem,
de que se destacam:

1 – Desde logo a atribuição de inteira relevância jurídica a compromissos de ordem não-patrimonial ou «moral» que sejam mutuamente assumidos e que se consubstanciam, entre outros, nos deveres conjugais de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência,
2 – bem como a possibilidade de qualquer dos cônjuges ver convenientemente sancionada qualquer violação desses mesmos compromissos por parte do outro, seja através de relevância bastante para que constituam causa de rescisão do contrato de casamento, isto é, para divórcio,
3 – seja até quando tal violação tenha consequências de ordem patrimonial que se reflicta, por exemplo, na partilha dos bens comuns do casal (como é o caso de um casamento celebrado após convenção antenupcial de comunhão de bens e em exista culpa exclusiva de um dos cônjuges no divórcio o qual, assim, não receberá na partilha mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado com comunhão de bens adquiridos),
4 – seja mesmo numa decisão judicial que decida sobre a atribuição do direito ou do destino da «casa de morada de família».
Depois,
5 – porque os cônjuges são herdeiros legitimários um do outro,
6 – sendo-lhes até assegurado, em caso de concurso com mais quatro herdeiros, o direito a pelo menos uma quarta parte da herança,
7 – e também o reconhecido um «apanágio de cônjuge sobrevivo», do qual poderão advir consequências, nomeadamente no que concerne a à obrigação de alimentos provenientes dos rendimentos da herança do outro cônjuge,
8 – e ainda, também ainda em caso de morte de um dos cônjuges, determinados privilégios na preferência sobre determinados bens da herança em caso de partilha, quando em confronto com os demais herdeiros,
9 – ou também, como por exemplo, o direito a ser encabeçado no direito de habitação da casa de morada de família e no uso do respectivo recheio.

Por outro lado,
10 – em caso de morte de um dos cônjuges, resulta como praticamente «automático» o direito do cônjuge sobrevivo a receber quaisquer pensões de sobrevivência a que eventualmente haja lugar.
11 – Ainda de particular importância se revelará o facto de que do casamento resultará inequívoco que constituem bens comuns do casal, por exemplo, o produto do trabalho de qualquer deles,
12 – e até, em casos determinados, os bens que, mesmo podendo ter sido antes considerados próprios, tenham sido adquiridos na sua maior parte com dinheiro ou bens comuns,
13 – a não ser, claro, que estejamos perante um casamento celebrado com separação de bens, mas no qual, ainda assim, e em caso de dúvida sobre a sua titularidade, está estabelecida na lei uma presunção de compropriedade,
14 – tal como também no regime da comunhão de adquiridos se encontra estabelecida uma presunção de comunicabilidade de bens móveis.
15 – Também no caso de um casamento celebrado sob o regime da comunhão de bens, a lei estabelece uma comunicabilidade dos frutos provindos de determinados bens ou direitos, ainda que tais bens estejam expressamente excluídos da comunhão.
16 – De qualquer casamento resulta que, em caso de morte, o cônjuge sobrevivo administra, em primeira análise, os bens que compõem a herança
17 – podendo, como qualquer outro herdeiro, pedir a sua partilha logo que assim o entenda.

Mais,
18 – em caso de divórcio poderá resultar uma obrigação de indemnização por danos não patrimoniais a favor de um dos cônjuges, caso o outro cônjuge seja considerado único ou principal culpado nesse divórcio.
19 – Também da possibilidade de duas pessoas se casarem resultará o concomitante direito a celebrarem casamentos urgentes ou “in articulo mortis”, com as óbvias consequências patrimoniais, morais e pessoais que dessa celebração poderão advir.
20 – Não sendo, como é óbvio susceptível de execução específica, também da promessa de casamento incumprida, em determinadas circunstâncias, por parte de um dos promitentes, poderão resultar consequências de ordem patrimonial para o outro.
Para além disso,
21 – ninguém considerará despiciendas as consequências decorrentes da atribuição conjunta a ambos os cônjuges da administração ordinária dos bens comuns do casal,
22 – nem sequer as consequências de ordem exclusivamente fiscal, que decorrem do casamento.
23 – Muito menos poderão ser desprezadas as maiores regalias e possibilidades de acesso a empréstimos hipotecários por força do seu reforço garantístico e ainda do aumento da “taxa de esforço” que se exige para tal contratação, que será decorrente da conjugação dos rendimentos de ambos os cônjuges.
24 – Ainda hoje, e mesmo na actual formulação da legislação do arrendamento urbano, continua a haver importantes consequências na transmissão do direito ao arrendamento a favor de um dos cônjuges por morte do outro, nomeadamente no que se refere aos arrendamentos comerciais.
25 – Ninguém duvidará que uma das mais relevantes consequências que poderão decorrer de um casamento será a inequívoca e rigorosa estipulação legal, com as respectivas consequências, da absoluta igualdade de direitos e deveres dos cônjuges.
26 – Como é do conhecimento comum, e na esmagadora maioria dos casos, cada cônjuge gozará do privilégio do acesso às regalias dos sistemas e subsistemas de saúde e de segurança social do outro cônjuge.
27 – Em caso de doença, a nenhum cônjuge é vedado o acesso às visitas hospitalares,
28 – e, mais importante do que tudo isso, resultará do facto de ser precisamente ao cônjuge a quem é cometida a responsabilidade da tomada de importantes decisões em caso de doenças incapacitantes em, quantas vezes, a decisão de desligar uma máquina de suporte artificial de vida.
Acresce que,
29 – ninguém poderá esquecer as consequências que de um casamento imediatamente decorrem no que se refere nas relações de afinidade com os parentes do outro cônjuge,
30 – sendo inegáveis as consequências e as valorações de ordem, pessoal, familiar e social que são necessariamente decorrentes dessa afinidade,
31 – até por que elas persistirão, claro, mesmo após o divórcio,
32 – não sendo, para além de tudo, de forma alguma desprezível o facto de que desse novo vínculo familiar resultará um alargamento no elenco dos motivos que constituem impedimentos dirimentes relativos matrimoniais.
33 – Como é ainda visivelmente usual o nosso país, a celebração de um casamento possibilita que qualquer dos cônjuges adopte do nome do outro, ou até que ambos o façam simultaneamente,
34 – do que resultarão óbvias consequências, no reforço do sentimento de identificação e de coesão familiar,
35 – para além da inegável relevância de ordem social que a maioria das pessoas ainda concede, e muito principalmente, recebe, dessa situação.
36 – Da relação familiar que o casamento transporta ainda consigo resultará a possibilidade da participação de qualquer dos cônjuges no «Conselho de Família» quando haja decisões jurisdicionais a tomar sobre menores, filhos do outro cônjuge, e com quem haja uma convivência e proximidade afectiva.
De seguida,
37 – não poderia deixar de ser aqui mencionada a possibilidade de, na pendência do casamento, um dos cônjuges poder exigir, e até mesmo judicialmente, a contribuição do outro para as despesas domésticas, como não poderia deixar de ser referida a enorme frequência de situações em que tal necessidade decorre, em tantos casos, da própria subsistência básica do cônjuge.
38 – Ao mesmo tempo, é estabelecida na lei uma obrigação alimentícia que vincula a outras um certo e determinado número de pessoas, enumeradas e ordenadas no artigo 2009º do Código Civil, sendo obviamente muito significativo que nessa norma seja elencada logo em primeiro lugar a obrigação de alimentos que vincula os cônjuges,
39 – sendo não menos irrelevante que, ainda por força de tal norma, tal direito a alimentos persista para ambos os cônjuges, mesmo até após a dissolução do casamento.
40 – Mais, a lei ainda estabelece mais uma peculiar situação de vinculação a uma obrigação alimentícia de que será beneficiário, por exemplo, um enteado menor de um dos cônjuges que dele estivesse a cargo ou que com ele convivesse à data da morte do outro cônjuge e progenitor do menor.
41 – finalmente, e ainda no que aos alimentos diz respeito, e uma vez estabelecida a obrigação de prestação de alimentos que mutuamente vincula os cônjuges, revestirá ainda particular relevo a possibilidade que de tal obrigação decorrerá para qualquer dos cônjuges – e até mesmo, repita-se para os ex-cônjuges – que passará a ter ao seu alcance, em caso de necessidade comprovadamente urgente e inadiável, o recurso à providência cautelar de alimentos provisórios, tantas vezes, e uma vez mais, essencial à própria subsistência mais básica desse cônjuge.

Assim,
estes quarenta e um casos constituirão somente “alguns” exemplos, que aqui se enumeraram de forma exemplificativa, que outros haverá.

Por outras palavras,
uma vez reconhecido o seu acesso ao direito à celebração de um simples contrato civil de casamento, serão pelo menos estas as consequências que, desde logo, enriquecerão imediatamente a esfera jurídica das Recorrentes,
pois que, é certo, de nenhuma outra realidade (nem sequer de uma convivência em união de facto mais ou menos prolongada), tal poderia decorrer.

Posto isto, urge então perguntar:
Para que se conceda às Recorrentes este manifesto ganho e enriquecimento jurídico, que restrições, ou que diminuição de direitos ou de quaisquer garantias haverá correspondentemente que fazer a quaisquer outros cidadãos,
nomeadamente aos cidadãos a quem o direito a contrair casamento é, porque são heterossexuais, já actualmente reconhecido?
- A resposta só pode ser esta: obviamente nenhuns.

Ora,
(e sendo certo que, falando-se aqui de um casamento, isto é, de um contrato de natureza exclusivamente civil, normativamente recebido, celebrado e formalizado unicamente por órgãos administrativos de um Estado, que é laico por imposição constitucional – não haverá, por isso, que apelar a quaisquer formulações religiosas ou destas decorrentes, ainda que mediata ou implicitamente)
então, dizíamos,
que PREJUÍZO, que DANO de ordem jurídica, ética, material, racional ou de qualquer outra natureza, decorrerá para UM SÓ CIDADÃO, que seja, e que se verifique por força do mero e simples reconhecimento a duas cidadãs, aliás de direitos plenamente idênticos, do direito a casarem-se?

Uma vez mais,
a resposta só pode ser esta: obviamente nenhuns.
Deste modo, e, se como acima dissemos,
o «Direito» é, também, a ponderação dos valores, de direitos e de garantias que estejam eventualmente em conflito entre si,
mas constitui, muito principalmente, a forma, ou mais exactamente, a Ciência que nos ensina a dirimi-los e a resolvê-los,
então,
e sendo certo que nenhuma diminuição garantística, nenhuma restrição de direitos e, enfim,
que nenhum dano ocorrerá para quem quer que seja,
logo,
não parece às Recorrentes que seja juridicamente justificável que lhes seja persistentemente denegado o direito a casarem-se.

A não ser que,
porventura, seja “permitido” encontrar-se alguma diminuição garantística, alguma forma de restrição de direitos como acontece, por exemplo, com Jorge Miranda e Rui Medeiros,
na consideração que fazem de que conceder aos homossexuais o direito de acesso à celebração de um simples contrato,
direito esse, aliás, concedido já a todos os demais cidadãos,
signifique de algum modo «suprimir a “instituição” ou desfigurar o seu núcleo essencial».

Não.
De forma alguma.
Pois,
na verdade, e até por vários motivos,
não só tal consideração é juridicamente infundada,
como é, também, eticamente inaceitável.

Em primeiro lugar porque,
mesmo que assim fosse, isto é, mesmo que da concessão do casamento aos homossexuais isso significasse «suprimir “a instituição” ou desfigurar o seu núcleo essencial»
ainda assim,
isso significaria, concomitantemente, que, no mesmo e preciso momento se estaria também a «suprimir e a desfigurar o núcleo essencial» uma outra «Instituição» completamente distinta e o acesso desta ao pleno reconhecimento jurídico e garantístico que do casamento lhe traria,
e a quem, se virmos bem, deveremos até conceder uma valoração bem superior à que se concede ao casamento (Jorge Miranda e Rui Medeiros também o consideram) e que é uma «Instituição» que se chama «FAMÍLIA».
Muito mais se recordarmos que logo o n.º 3 do artigo 16º da «Declaração Universal dos Direitos do Homem»,
com a particular relevância que o n.º 2 do artigo 16º da Constituição exige que lhe demos, chegando até a exigir-nos que interpretemos e integremos o nosso texto constitucional na sua harmonia, prescreve claramente que:

- «A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à protecção desta e do Estado».
Assim,
e precisamente a este propósito, impõe-se aqui nova referência à douta opinião de Luís Duarte d’Almeida, de cujo «Parecer» (que uma vez mais aqui deixamos reproduzido na sua integralidade), agora destacamos o seguinte:

«O regime jurídico do casamento civil fundamenta-se, antes, no interesse de reconhecer publicamente o compromisso recíproco dos membros do casal, institucionalizando a sua vontade de constituir família “mediante plena comunhão de vida” (como se escreve no artigo 36.º da Constituição, e, na parte não gafada de inconstitucionalidade, no art. 1577.º do Código Civil) e o desejo de mutuamente assumirem um compromisso de amor, afecto, cuidado mútuo, e companheirismo.

Ora,
«A diversidade de sexo dos membros do casal é evidentemente alheia à prossecução desse interesse.
«O artigo 36.º da Constituição, aliás, em que se dispõe que “todos têm direito a constituir família […] em condições de plena igualdade”, especifica o artigo 13.º e proscreve quaisquer tentativas de associar o conceito de família a algum subconjunto dos cidadãos portugueses; e o artigo 67.º da Constituição garante para a unidade da família, que toma como “elemento fundamental da sociedade”, o “direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a plena realização pessoal dos seus membros.”

Deste modo,
«será ainda necessário refutar a histeria apocalíptica daqueles que imaginam e temem uma “dissolução da família” quando o direito a contrair casamento vier de facto a ser reconhecido pela lei civil, como exige a Constituição, a todas as pessoas?
«Do mesmo modo que o conceito de casamento não participa de qualquer “essência” intemporal, também não é juridicamente defensável que só uma unidade de base heterossexual “seja” “verdadeiramente” uma família.
«E, seja como for, há hoje muitos elementos para se perceber bem que à reivindicação da extensão do instituto do casamento ao casais compostos por pessoas que não sejam de “sexo diferente” subjaz, em geral, um pressuposto de respeito e de defesa do casamento e da família enquanto instituições fundamentais (e, normalmente, na sua configuração “tradicional”).

Assim,
e pelo que vimos,
e mesmo que da concessão do casamento homossexual resultasse «um dano» para a «Instituição» do casamento (afirmação que se repudia)
mas que, ao invés,
se da sua não concessão resultasse também um «dano» mas desta vez para a «Instituição» da família,
então,
nos critérios de ponderação e de valoração de ambas as «Instituições», não poderia o Tribunal Constitucional deixar de considerar a FAMÍLIA como obviamente a «Instituição» a valorar superiormente e bem «acima» do casamento, e de, por isso, lhe atribuir o significado e a relevância que merece,
para, depois, disso retirar as devidas consequências,
que significarão, como é obvio, o reconhecimento às Requerentes, no âmbito da FAMÍLIA que o seu projecto de comunhão de vida constitui, do seu direito «a contrair casamento em condições de plena igualdade».

Pois,
tanto mais que,
e até muito principalmente,
porque nessa mesma ponderação de valores não poderia este Tribunal Constitucional deixar de INCLUIR, dando-lhe e atribuindo-lhe o justo e relevante significado que,
não haverá quaisquer dúvidas,
merecerá o expressivo elenco de direitos que acima se deixou feito.

Isto é,
o Tribunal Constitucional não poderia deixar de considerar a indubitável relevância e o conjunto de direitos e de garantias que enriqueceriam e acresceriam à esfera jurídica das Requerentes, cidadãs em pleno gozo de direitos, no preciso momento em que se lhes reconheça o direito a casarem-se uma com a outra.

Até por que, sempre se diga,
e muito sinceramente não se entende,
em que medida, tal como o fizeram Jorge Miranda e Rui Medeiros, alguém pudesse de alguma forma ter considerado que a extensão aos homossexuais do direito a contraírem casamento significaria «suprimir a “instituição” ou desfigurar o seu núcleo essencial»
a não ser, obviamente,
que tal consideração seja feita exclusivamente no âmbito e não mais do que numa simples perspectiva “ético-religiosa” ou até (e citando as palavras do acórdão n.º 351/05 deste Tribunal Constitucional), que «não deixa de revelar resquícios de uma opção (...) que se não desprende da tutela de sentimentos gerais de “moralidade sexual”...».

Ou até ainda,
e citando agora, uma vez mais, as expressivas palavras contidas no acórdão n.º 247/05 deste Tribunal Constitucional,
a não ser que, para a referida consideração,
se tivesse previamente admitido «um DESVALOR especial da homossexualidade» ou ainda a ideia de que «a heterossexualidade é que representa a situação mais normal», havendo naquela algo de estatisticamente anormal»,

sendo certo que, continua aquele acórdão,
«esses parâmetros de normalidade/anormalidade, extraídos, aparentemente, de uma observação "estatística" da sociedade, afiguram-se imprestáveis para justificar a diferença de tratamento jurídico, face aos artigos 13º, n.º 2, e 26º, n.º 1, da Constituição,
o que significaria que estaria, assim e, portanto, em completo desrespeito por aquelas determinações constitucionais, «a admitir-se um "desvalor especial" relativo à homossexualidade».
Ora,
uma vez mais aqui se impõe inevitavelmente uma nova e especial referência à doutrina proclamada por Pedro Múrias,
cujo «Parecer», sempre elaborado com a clarividência que lhe é peculiar (e para cuja integralidade uma vez mais remetemos), não resistimos novamente a citar.

Assim,
E avançando já imediatamente para o comentário bem referencial que no seu «Parecer» faz ao tema concreto e específico a que pouco acima acabámos de nos referir,
isto é, à opinião catastrofista de Jorge Miranda e Rui Medeiros, que consideram que o acesso dos homossexuais ao direito a contraírem casamento significaria «suprimir a “instituição” ou desfigurar o seu núcleo essencial», Pedro Múrias ensina-nos a tal propósito:

«Jorge Miranda e Rui Medeiros (em anotação ao art. 36.º CRP), sustentam que o casamento entre pessoas do mesmo sexo seria cons­ti­tu­cio­nal­mente proibido.
Pois,
«a lei ordinária não poderia alargar o casamento a pessoas do mesmo sexo.
«A tese é curiosa pelo paradoxo de afirmar a proibição do casamento a um grupo de casais com base num excerto cons­ti­tu­cio­nal que dispõe que «todos têm o direito de contrair casamento em condições de plena igual­dade».
É que, de facto,
«Os autores não se limitam a defender a proibição apesar de um texto permissivo ou inde­pen­den­te­mente dele;
«defendem­‑na por causa desse mesmo texto permissivo».

Ora,
«Embora não conheçamos casos válidos deste ver­da­deiro argu­mento ad contrarium, chamemos­‑lhe assim, não excluímos completa­mente a sua viabilidade, pelo menos em situações imaginárias...
«Importa, sim, notar que os autores estribam a sua inter­pre­ta­ção na teoria da «garantia de ins­ti­tuto».

Dessa forma,
«cometem o que a nosso ver são dois erros essencial­mente meto­do­ló­gicos:
«A teoria da garantia de ins­ti­tuto é em si mesma infundada,
«e os ins­ti­tutos nem sempre são como se supôs.

Trata­‑se de duas objecções inde­pen­dentes:
«A ideia de garantia de ins­ti­tuto, ou garantia ins­ti­tu­cio­nal (...) visou teorizar a protecção cons­ti­tu­cio­nal da pro­prie­dade. A pro­prie­dade não existe sem o direito ou, pelo menos, alguma ins­ti­tui­ção análoga.
«Ao con­trá­rio da vida, da integridade física, da expressão, da liber­dade de facto, etc., a pro­prie­dade é já um produto dos orde­na­mentos jurí­dicos, que prevêem os seus pres­su­postos e estatuem o seu conteúdo e efeitos ulteriores.
«...A tese da garantia de ins­ti­tuto pretende que as cons­ti­tui­ções, ao surgirem, recebem um ins­ti­tuto da história e das leis civis então vigentes, e garantem a sua con­ser­va­ção.

Ou seja,
«As cons­ti­tui­ções protege­riam, pois, a manu­ten­ção do ins­ti­tuto constante dos códigos civis do tempo da ela­bo­ra­ção daquelas.

Ora,
«Num livro recentíssimo, M. Nogueira de Brito arrasa a tese da garantia de ins­ti­tuto. (...) Apesar da exposição desenvolvida do autor, supomos admissível resumir em três pequenos parágrafos um número mais do que sufi­ci­ente de argu­men­tos que reclamam o aban­dono daquela doutrina (...).
«Ela conduz a um círculo vicioso, pois identifica a garantia cons­ti­tu­cio­nal relativa a um ins­ti­tuto com uma dada configuração do ins­ti­tuto, quando essa configuração legal, mesmo a anterior à Cons­ti­tui­ção, tem depois de ser aferida pela Cons­ti­tui­ção.

«A doutrina visada tam­bém vem privilegiar um modo de formação e um conteúdo de certa posição jurídica, quando outros modos de formação e outros conteúdos ainda reco­nhe­­ci­dos como configurando a mesma posição jurídica, ou mesmo já outras posições jurídicas, podem carecer de idêntica tutela, sem que o seu conteúdo seja nalgum momento recebido pela Cons­ti­tui­ção.

«A garantia de ins­ti­tuto, ao apoiar­‑se na tradição, na história desse ins­ti­tuto, conduz à protecção de um sistema passado com a única justificação de ser passado, diminuindo as suas configurações presentes. A petrificação desse passado na Cons­ti­tui­ção exigiria uma revisão cons­ti­tu­cio­nal para alargar a garantia de situações jurídicas que o legislador ordinário é livre de alterar.

«A garantia de ins­ti­tuto — vejamos aqui um traço mais subtil comum à pro­prie­dade e ao casamento — vem preservar uma ordem eco­nó­mica e social pretérita em relação à qual a Cons­ti­tui­ção pode ser neutra ou mesmo adversa. Os ins­ti­tutos jurí­dicos, entre outras coisas, configuram­‑se de modo mais ou menos adequado a produzir certos efeitos na vida social. Dar guarda cons­ti­tu­cio­nal apenas a certa modalidade ori­gi­ná­ria do ins­ti­tuto é um modo de conserva­do­rismo social que a Cons­ti­tui­ção pode não querer ou, pelo menos, não querer privilegiar.
«Apesar das diferentes versões, é ainda constante na teoria da garantia de ins­ti­tuto a ideia de protecção de uma parte do direito objec­tivo inde­pen­den­te­mente das posições sub­jec­tivas dos respectivos titulares. Este aspecto é pouco consentâneo com a redacção cons­ti­tu­cio­nal e com a inteligibilidade da garantia, que se vê intuitivamente como um modo de tutela das pessoas que são ou pretendem vir a ser titulares de certa posição jurídica (cf. arts. 36.º e 62.º CRP).

«...A pro­prie­dade é reconhe­cida como um modo, um ins­tru­mento para a rea­li­za­ção da pessoa, para a sua formação responsável e para o exercício de liber­dade (essencial­mente patri­mo­nial). Esses fins últimos reclamam o acesso das massas à pro­prie­dade, facilitando a sua aqui­si­ção, e porventura ainda o surgimento de novas formas da pro­prie­dade em sentido cons­ti­tu­cio­nal.
«O privilégio pro­prie­tá­rio de uma minoria, a que o direito civil é pouco sensível, pode e deve ser corrigido ou atenuado através de intervenções legislativas.
«Uma garantia do status quo nor­ma­tivo embaraçaria a correcção.

Por seu turno,
o casamento «é tam­bém um ins­tru­mento para a rea­li­za­ção da pessoa, para a sua formação responsável e, de modo notório na liber­dade de casar ou não casar, para o exercício de liber­dade (essencialmente pessoal)».
«Estes fins últimos reclamam que o acesso ao casamento não seja restringido à maioria heterossexual. Impõe­‑se que a minoria homossexual possa, pelo menos de iure, ter o mesmo acesso.
«O estado social de direito, tal como obriga a que as massas tenham maior acesso ao que foi privilégio de uma minoria, proíbe que a maioria retenha para si modos jurí­dicos de cada um se sentir privilegiado.

Assim,
«o defeito mais visível da anotação de Jorge Miranda e Rui Medeiros é a ausência de uma argu­men­ta­ção substancial, numa atitude que nos parece algo defensiva. Na ver­dade, mesmo no espaço curto de uma anotação, exigir­‑se­‑ia que se considerasse quais os valores, prin­cí­pios ou objec­tivos cons­ti­tu­cio­nais que apontariam contra o casamento homossexual.

«Os autores refugiam­‑se num argu­mento de defi­ni­ção, sem dúvida lícito à partida, mas muito insu­fi­ciente.
«É preciso tomar posição no quadro cons­ti­tu­cio­nal, não basta dizer que o assunto já estava «resolvido» no Código Civil e na tradição, porque assim não se faz mais do que deslocar a pergunta para os valores, prin­cí­pios ou objec­tivos (cons­ti­tu­cio­nal­mente aceitáveis) que fundariam a «solução» da lei civil.
«Este defeito ainda resulta do arbítrio conatural à tese da garantia de ins­ti­tuto, mas incita­‑nos tam­bém a repensar o tipo de defi­ni­ção de casamento que foi usado.

É que

«os autores tomaram como defi­ni­ção de casamento a fórmula de uma concepção do casamento, em vez de olharem ao conceito de casamento.
«Ora, as diferentes concepções, seja do que for, discutem­‑se com argu­men­tos nor­ma­tivos, de substância.
«Ao con­trá­rio do conceito, não são um dado analítico inerente ao bom uso de um termo.
«Como está demonstrado há algumas décadas, só são imediata­mente imputá­veis às cons­ti­tui­ções e às leis os conceitos, não as múltiplas concepções que eles permitem, pois só os conceitos são significado dos termos usados.
«A distinção entre «conceitos» e «concepções» remonta a um muito citado estudo filosófico de W. B. Gallie, de 1956 (..) Uma coisa é, por exemplo, o conceito de «bom livro»;
«outra coisa são as diferentes concepções com que se concretiza o que é um bom livro». (...)
Ora,
«a distinção entre conceitos e concepções é essencial para a boa inter­pre­ta­ção e aplicação da lei. (...)
«De tudo isto, retira­‑se o erro meto­do­ló­gico dos autores que pressupuseram que a Cons­ti­tuição recebeu um conceito his­tó­rico de casamento.
«O conceito de casamento, de facto, é um produto his­tó­rico, como o significado de qual­quer palavra,
«e entra na Cons­ti­tui­ção ao ser usada a palavra ou um seu sinónimo.

Mas,
«esse conceito não inclui a concepção da lei civil e da história juscultural precedente. Em lin­gua­gem comum, o que define o casamento são os seus efeitos jurí­dicos, que veremos não se reduzirem a um conjunto de direitos e obri­ga­ções, não são as situações de facto qualificáveis como casamento.
«O casamento civil é casamento, apesar de ter surgido numa alte­ra­ção radical dos pres­su­postos de facto da figura, porque mantém os direitos, as obri­ga­ções e a normatividade simbólica original.
«O que a Cons­ti­tui­ção garante a todos são esses efeitos deônticos e simbólicos, ou os decisivos entre eles, e não a manu­ten­ção dos requisitos do casamento. A estes, cabe avaliá­‑los à luz dos valores cons­ti­tu­cio­nais.
Do mesmo modo,
«o casamento entre pessoas do mesmo sexo é casamento. Entre quem aceita o casamento homossexual e quem o recusar, não há uma falsa discussão resultante de equívocos termi­no­ló­gicos. As pessoas não estão simples­mente a usar a mesma palavra com um sentido diferente.
«Nesse caso, a discussão seria ininteligível. Na ver­dade, todos compreen­demos que, na Holanda, na Bélgica, em Espanha, no estado do Massachusetts, na África do Sul e no Canadá, os homossexuais podem casar.

«Não se trata de outra ins­ti­tui­ção, de uma figura análoga ao casamento. Essa foi a saída discriminatória noutras paragens. Quem põe aspas no “casamento” entre pessoas do mesmo sexo não tem dúvidas sinceras quanto à apli­ca­bi­li­dade do termo, antes pretende distinguir pessoas numa questão que não é de meras palavras.

«Noutra maneira de dizer ainda, o objecto do direito fun­da­men­tal é o bem jurí­dico nor­ma­tivo do casamento, não são as condições de facto da sua aqui­si­ção. Quanto a estas, a Lei Fun­da­men­tal dispõe simples­mente que todos têm o direito de casar, em igual­dade, cometendo ao legislador ordinário, em respeito dos prin­cí­pios cons­ti­tu­cio­nais, a determinação dos demais requisitos (no art. 36.º, n.º 2).

Mais:
«cumpre notar que o erro de confundir o conceito com uma sua concepção manter­‑se­‑ia mesmo que fosse correcta a tese da «garantia de ins­ti­tuto». O ins­ti­tuto a garantir seriam as regras quanto a efeitos do casamento, e o seu único pres­su­posto conceptual é que os efeitos se esta­be­leçam entre pessoas.
«Em qual­quer caso, além do erro da doutrina da garantia ins­ti­tu­cio­nal, concluímos ainda que não há qual­quer argu­mento ex definitione contra o casamento homossexual. (...)
«pelo con­trá­rio a defi­ni­ção de casamento relevante para a apreciação do Tri­bu­nal Cons­ti­tu­cio­nal acolhe natu­ral­mente essa solução.

Assim,
e chegados a este ponto,

é completamente irresistível não continuar a citar o «Parecer» de Pedro Múrias (para cuja totalidade aqui continuamos a remeter expressamente),

pois que agora se refere às noções de «função, fina­li­dade e funcionalismo» nomeadamente a respeito do casa­mento homossexual, onde de um modo muito particular se devem ponderar­ eventuais fina­li­dades ou funções do casamento ou das leis do casamento que o favoreçam ou contrariem,
e cuja dificuldade metodológica reside, de facto,
«na tendência para ver fina­li­dades onde elas não existem, para exigir uma fina­li­dade onde o fun­da­mento é de outra índole e para ver como necessárias certas funções contingentes. (...)
Assim,
e no que se essencialmente se refere às normas jurídicas,
«a ideia de que a todas e cada uma delas subjazeria uma função ou uma fina­li­dade pode hoje ter­‑se por anacrónica.
«A regra do art. 795.º n.º 1 do Código Civil, para usar um exemplo importante para os civilistas, não tem fina­li­dade alguma. Impossibilitando­‑se a pres­tação devida, fica igual­mente desobrigada a contraparte da relação sina­lag­má­tica, com direito à res­ti­tui­ção se já tiver prestado.
Ora,
«esta solução, tanto quanto se sabe universal, não tem a fina­li­dade de permitir à contraparte realizar outros contratos ou aplicar o seu tempo e patri­mó­nio de outras maneiras. Isso é o que decorre conceptualmente de se extinguir a obri­gação, e a extinção da obri­gação é o estatuído, não o visado por aquela regra. O art. 795.º, n.º 1, decorre directa­mente do sina­lagma, com considerações jurídicas de razoabilidade e bom­‑senso em seu apoio.
(...)

Assim,
«passa­‑se o mesmo na esfera não patri­mo­nial. Os direitos morais de autor não visam a protecção dos autores. São uma protecção dos autores em homenagem ao seu papel criador e em respeito de uma mani­fes­tação da sua perso­na­li­dade. Podem depois ser usados para conseguir fins variáveis.

«Os direitos de perso­na­li­dade pro­pria­mente ditos, na sua regulação civil, tam­bém não são funcionalizados. Decorrem mais ou menos directa­mente da concepção da pessoa como ser digno de respeito, concretizando alguns modos de conseguir esse respeito.

Ou seja,
«O casamento, na sua feição jurídica, não tem função nenhuma que o individualize. Podem agora utilizar­‑se as precisões dos parágrafos antecedentes e ainda a distinção entre um sentido nor­ma­tivo de função e um sentido meramente his­tó­rico ou explicativo.
De facto,
«Se quiséssemos explicar as origens, no séc. xvi, do casamento obri­ga­to­ria­mente formalizado, que hoje temos em vista, não seria difícil ver­‑lhe uma função de controlo régio sobre os relacionamentos familiares e os mecanismos sucessórios, nome­a­da­mente através da distinção entre filhos legítimos e bastar­dos.
«Um ponto de vista análogo sobre o casamento civil, no séc. xix, levaria a ponderar a função de delimitação do poder das igrejas pelos estados, certa­mente mais signi­ficativa do que uma eventual resposta a reivindicações de minorias religiosas ou ateias. Noutros casamentos, noutros espaços his­tó­ricos ou geográficos, outras funções políticas e sociais avultariam.

«Para compreender hoje as leis na sua vali­dade nor­ma­tiva, tais explicações contam pouco ou nada. Uma função do casamento teria de ser um elemento operativo para a inter­pre­ta­ção das leis e a boa decisão dos casos pro­ble­má­ticos que surjam à sua luz, revelando­‑se, de alguma maneira, nas próprias leis ordinárias ou noutros lugares do sistema.

«Seria um lapso ver como função ou fina­li­dade da ins­ti­tui­ção legal do casamento o incen­tivo à criação de «comunhões plenas de vida», na expressão legal.
«A começar, pelo motivo óbvio de que o casa­mento não é um bónus legal feito de privilégios e benesses. O art. 1672.º CC, num tom meio sombrio, até apresenta o conteúdo da relação matrimonial apenas pelo lado dos deveres dos cônjuges. Logo, o casamento não é um incentivo.
Depois,
«porque a comu­nhão de vida é, nor­­mal­mente, o que desejam nubentes e candidatos à união de facto. Não é de esperar que se sintam incentivados a isso por causa do casamento. Acima de tudo, não pode reco­nhecer­‑se aquela fina­li­dade legal porque a comunhão de vida não é um valor em si, tendo apenas o valor que lhe queira ser atribuído pelos respectivos sujeitos para a sua rea­li­za­ção pessoal.

Pois,
«em cada concreto casamento, a comunhão de vida tam­bém não é uma fina­li­dade nor­ma­ti­va percep­tível. No seu correlato jurí­dico de impe­ra­tivo e simbologia, e no que caiba dentro desse corre­lato, a comu­nhão de vida é o conteúdo do con­trato matrimonial, expresso nos deveres dos cônjuges e no sentido simbólico que os acompanha. Para lá desse conteúdo, a maior ou menor comunhão de vida fica à liber­dade individual e conjunta dos cônjuges, no espaço prote­gido da sua privacidade e intimidade, não fazendo o direito projectos à margem de tal liber­dade.

De qual­quer maneira,
«ser ou não a comunhão de vida função do casamento pouco importa para os casais do mesmo sexo. Eles reclamam, justamente, para as comunhões plenas de vida que têm ou planeiam ter, a juri­di­cidade que o casamento dá.

Pois,
como se sabe,
«o tema da função do casamento, quando usado contra as pretensões dos casais gay ou lésbicos, é a invocação de uma função procriativa. «Procriativa», no sentido restrito da geração de filhos biologica­mente comuns.
«Como se sabe, há vários obstáculos legais à tese da função procriativa do casamento, que aqui se arrolam sem desvio dos ensinamentos tradi­cio­nais:

i) Os subefeitos jurí­dicos do casamento, sejam eles sucessórios, de segu­rança social, no direito do arrendamento ou outros, não ficam prejudicados pela inexistência de filhos, mesmo que intencional;
ii) A Cons­ti­tui­ção de 1976 veda a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos;
iii) A esterilidade de um ou ambos os cônjuges, ou mesmo de um cônjuge com o outro, não é impedimento matrimonial, dirimente ou impediente, nem mesmo quando declarada ou do conhe­ci­mento público;
iv) Não é motivo de anulação o erro quanto à esterilidade do outro cônjuge que seja indescul­pável ou presumivel­mente irrelevante para a formação da vontade de casar;
v) A esterilidade super­ve­ni­ente não é fun­da­mento de divórcio litigioso;
vi) A impotência sexual e as incompatibilidades por razões eugénicas são tão irrelevantes como as esterilidades;
vii) O uso de contraceptivos contra a vontade do cônjuge, por si, tam­bém não fundamenta o divórcio litigioso;
viii) O acordo entre os nubentes no sentido de não ter filhos não vale como pactum simulationis;
ix) Não há idade limite para casar;
x) Reconhecem­‑se os casamentos urgentes por perigo de morte e in articulo mortis.

Mais:
«Contra a tese de uma função procriativa do casamento argu­men­ta­tiva­mente atendível, importa sobre­tudo explorar a falta de con­se­quên­cias da inexis­tên­cia de filhos nos efeitos directos e indirectos do casamento.
Por outro lado,
importará ainda acentuar
«que tam­bém não é certo que a criação e educação dos filhos biologicamente comuns seja um bem em si mesmo, alvo possível de uma intenção legal, ou pelo menos um bem distintivo. Lembre­‑se que a homossexualidade não limita as capa­ci­dades reprodutivas.
«Talvez a maioria das lésbicas e muitos homens homossexuais têm filhos biológicos. O facto de estes filhos terem sido gerados numa relação heterossexual, num acto heterossexual isolado, numa fertilização in vitro ou serem adoptivos em nada releva para a sua dignidade de protecção.

«Filhos de homossexuais ou de heterossexuais, a adequação do casamento para a sua criação e educação não poderia restringir­‑se aos casos em que os cônjuges são os seus progenitores. Se alguma fina­li­dade devesse imputar­‑se ao casamento quanto a filhos, em termos legal e valo­ra­ti­va­mente dignos de menção, sempre teria de respeitar à criação e educação de quaisquer filhos, mesmo que não biologicamente comuns aos cônjuges.
A isso impõe, aliás, a consagração legal e cons­ti­tu­cio­nal da superioridade do interesse das crianças em litígios quanto à tutela de menores. (...)


Pois bem:

será, sem qualquer dúvida, precisamente agora a ocasião adequada para nos socorrermos da referencial opinião da Dr.ª Isabel Moreira,
expressa no «Parecer» para cuja totalidade remetemos para o documento que a final se junta (que, pela sua relevância, só não se repete na íntegra por manifestas razões de economia processual, mas que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).

Assim,
no seu «Parecer» (cujos sublinhados e destaques, que são feitos exclusivamente nesta citação, são exclusivamente nossos) e como um óbvio resultante da sua lúcida argumentação a Dr.ª Isabel Moreira acaba por concluir pela «inconstitucionalidade das normas resultantes da leitura conjugada do artigo 1577.º do Código Civil e da alínea e) do artigo 1628.º do mesmo Código, nos termos das quais duas pessoas do mesmo sexo não podem contrair casamento e, se o fizerem, é o mesmo tido por inexistente».

Depois,
e considerando o «Direito Fundamental de Contrair Casamento» como uma inequívoca expressão do «Princípio da Dignidade da Pessoa Humana», Isabel Moreira defende que aquele direito, na norma que o estabelece, está sistemática e materialmente inserido na categoria dos direitos, liberdades e garantias e é, por isso mesmo,
«beneficiário do respectivo regime agravado de protecção.
Pois
«trata-se de um direito das pessoas e não de uma qualquer prestação atribuída a uma instituição, como a família, que, noutra sede é, enquanto tal, beneficiária de prestações estaduais.
Ora,
«se sabemos que a lei reserva este direito para pessoas de sexo diferente, esse saber não pode orientar o percurso da análise do enquadramento jurídico da questão;
isto é,
«a Lei Fundamental deve ser lida sem o óculo do direito ordinário vigente, sob pena de se inverter a hierarquia das fontes de direito.
Por outras palavras,
«interessa determinar o que, à data, independentemente do que prescreva o direito ordinário, a CRP impõe e, daí, retirar as devidas consequências.

Assim,
quando lemos no n.º 2 do artigo 36º da Constituição que a regulação dos requisitos e os efeitos do casamento e da sua dissolução, por morte ou divórcio, independentemente da forma de celebração são relegados para a lei, não é lícito considerar que daqui resulta uma espécie de «autorização constitucional dada ao legislador quanto à questão de consagrar, ou não, a possibilidade de celebração de casamentos entre pessoas do mesmo sexo».
De facto,
«onde se lê que a lei regula requisitos e efeitos, nessa óptica,
«deve ler-se que a lei decide, desde logo, se duas pessoas do mesmo sexo podem casar, o que será, portanto, imagina-se, domínio de requisito.
Mais:
haverá ainda quem defenda que a Constituição recebe o conceito histórico de casamento entre pessoas de sexo diferente.
Contudo
«a Lei Fundamental não recebe qualquer conceito de casamento.

Então, e como acima vimos, defender o contrário será, então,
«ler a Constituição a partir do direito civil em vez de se inverter a ordem do exercício, em obediência à supremacia normativa da Constituição
muito mais quando, perante a inevitável evolução da sociedade, se admite que tudo fatalmente muda «mas que a Constituição continua a receber, como se nada se tivesse passado, o conceito de casamento que desconsidera uma parte substancial da população».

Depois, e a este propósito, Isabel Moreira continua:

«O direito de contrair casamento é, em primeiro lugar, uma expressão normativa do princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1.º da CRP.
Mas,
«porque Constituição e realidade social não são mundos separados (...) a dignidade da pessoa humana serve-nos aqui como elemento que unifica direitos fundamentais e o sistema constitucional.
E citando depois Jorge Reis Novais:
«a elevação da «Dignidade da Pessoa Humana “a princípio supremo da República e, logo, do seu direito objectivo, obriga o Estado a conformar toda a sua ordem jurídica num sentido consentâneo e vincula todos os poderes do Estado a interpretar e a aplicar as respectivas normas em conformidade. Num plano diverso, a consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado de Direito democrático afasta decisivamente qualquer ideia de projecção do Estado como fim em si, como se o Estado pudesse prosseguir o próprio engrandecimento enquanto destino de uma pretensa realidade ética em que o indivíduo se devesse, subordinadamente integrar”.

Assim,
continua depois Isabel Moreira, «os direitos fundamentais». enquanto expressão da dignidade da pessoa humana, «garantem ao indivíduo um espaço de não intervenção alheia»,
e relembrando «uma vocação contramaioritária dos direitos fundamentais, afirma que «numa ordem constitucional... quando um direito expressa claramente uma liberdade ou uma competência que inscrevem o titular num universo de seres livres e iguais em dignidade, só por razões muito ponderosas, excepcionais e com claro apoio na Constituição pode o legislador afastar uma categoria de pessoas daquele direito.

Por esse mesmo motivo, conclui dizendo que,
«as liberdades e competências, fortemente ligadas à dignidade das pessoas, não têm de esperar pelo consenso social para terem plena efectividade»

e, mais impressivamente ainda que,
«onde se não encontrar um outro direito, interesse ou valor constitucionalmente fundado que justifique o sacrifício do direito, uma mera concepção social dominante não ganha ao trunfo.
«E tem-se a conclusão por segura, por directa aplicação do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa».

Por outro lado,
afirma ainda Isabel Moreira que
é no «Princípio da Dignidade da Pessoa Humana» que se inscreve «a autonomia ética do indivíduo, com a consequência de que “na sua plena assunção como sujeito, é ao indivíduo que cabe, primacialmente, a configuração e densificação do conteúdo preciso da sua dignidade”».

Em consequência,
uma vez reconhecida «a capacidade de “produzir o sentido da sua própria dignidade”» então,
«deriva desta premissa uma remissão “para as ideias chave de autodeterminação, livre desenvolvimento da personalidade, da livre eleição e adopção de planos e formas de vida”.
e também, agora de uma óptica constitucional uma muito particular ideia de «“igual dignidade”».

Assim,
e com base nestas formulações de inequívoco princípio, merecedor até de dignidade constitucional, a conclusão, já ninguém mais ousará duvidar, só poderá consistir numa viva repulsa ao legislador – mas também ao confronto constitucional – que, quanto ao casamento, ainda ousam persistir no firme propósito de excluir o seu acesso a uma parte significativa da população portuguesa.
Ou seja,
«pode, pois, afirmar-se solidamente que os direitos fundamentais assim concebidos são particularmente úteis, no quadro da dignidade da pessoa humana e do livre desenvolvimento da personalidade, a indivíduos e grupos com a debilidade de se não inserirem em concepções ou modos de vida conjunturalmente apoiadas por maiorias políticas, sociais ou religiosas».

Ora,
é precisamente daqui, isto é, desta Dignidade da Pessoa Humana que, de acordo com Isabel Moreira, se integra e decorre «o livre desenvolvimento da personalidade.»

De facto,
foi com a revisão constitucional de 1997 que em Portugal «se consagrou o direito ao desenvolvimento da personalidade no âmbito de um texto muito mais abundante em especificação e autonomização de direitos»
Pois,
de acordo com Marcelo Rebelo Sousa e José de Melo Alexandrino, que Isabel Moreira igualmente cita,
«este direito veio “reforçar todos os direitos pessoais activos ― liberdade de expressão, liberdade de consciência, de religião e de culto, a liberdade de criação cultural e artística, as liberdades de manifestação, associação e reunião, o direito de aprender e de ensinar, a liberdade de escolha de profissão, a liberdade de iniciativa e a autonomia de orientação sexual ― bem como limitar a intervenção do Estado e da sociedade na esfera individual”.
Contudo, é também certo que
«o sentido e o âmbito de protecção deste direito não são claros, e só poderão colher-se levando em linha de conta as especificidades do nosso sistema de direitos, liberdades e garantias.

Ora,
acontece que uma dessas especificidades é, precisamente, «a complexa e extensa lista de preceitos de direitos fundamentais».
Mas
e tal como Isabel Moreira já antes havia defendido (in “A Solução dos Direitos, Liberdades e Garantias e dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais na Constituição Portuguesa), «o direito ao livre desenvolvimento da personalidade é um novo direito, e não um princípio jusfundamental (como aliás também o defende José de Melo Alexandrino)
«que, se potencia outros ― como as liberdades referidas –, numa relação de complementaridade, também reinterpreta os direitos fundamentais e permite que deles se extraiam novas faculdades».

Assim,
a conclusão só pode ser uma:
«O direito pessoal de contrair casamento, no plano constitucional, tem, do ponto de vista da excepcionalidade da negação da universalidade (artigo 12.º da CRP) uma reinterpretação obrigatória à luz de um direito que dá um sinal claro à inclusão constitucional dos planos de vida pessoais mais fragilizados pelas concepções dominantes contrárias.
«O que parece inadmissível à luz deste novo direito fundamental com, pelo menos, a função referida, é ter por inalterada a opção valorativa da Constituição relativamente aos direitos dos homossexuais».

Mas mais:
A revisão constitucional de 1997 teve sobretudo em vista a tutela da individualidade, e em particular das suas diferenças e autonomia,
tal como decorre, aliás, dos seus próprios trabalhos preparatórios onde, segundo nos recorda Paulo Mota Pinto (citado por Isabel Moreira),
«se procurou deixar consagrado um direito de liberdade do indivíduo em relação a modelos de personalidade, integrando o direito à diferença”».

No entanto,
e mesmo que assim se não defendesse e se optasse antes por uma perspectiva mais limitativa do direito ao desenvolvimento da personalidade,
ainda assim, dizíamos,
e até pela sua própria definição de princípio, teria sempre de concluir-se «pela séria candidatura das pessoas do mesmo sexo que se pretendam casar à intenção de protecção da garantia jusfundamental».

Ora,
aqui chegados, importa não esquecer a incessante polemização que temas como o casamento entre pessoas do mesmo sexo têm trazido à sociedade portuguesa. E que só cessará, mas não logo imediatamente (nem sequer nunca unanimemente), mas tão somente após o decurso de um período de constatação societária da inocuidade do reconhecimento civilístico do acesso homossexual ao direito de contrair casamento, até, quanto mais não fosse, como mera expressão normativa do princípio da dignidade da pessoa humana.

Mas que,
ainda assim,
adivinha-se dos exemplos que nos chegam dos países que nos estão cultural ou civilizacionalmente mais próximos, como a Espanha,
como até dos exemplos históricos de polemização semelhante ocorridos no nosso país, e a que já nos referimos,
que será certamente um período de muita curta duração. Tão curta quanto é certo, tal como sempre aconteceu no nosso país (e os portugueses exigem que o reconheçamos), que a uma concessão antes polémica de direitos fundamentais, cedo logo se lhe sucede uma consideração de indispensabilidade e de perpétua indisponibilidade dos mesmos.

Ora,
é fatal e torna-se previsível e quase inevitável que, dentro dessa polémica, se tornem recorrentes argumentos que cedo se extremam num desespero irracional que lhes advém da óbvia sensação de inevitabilidade que é transversal a todos os portugueses – quem o negará? –
de que «mais cedo ou mais tarde»,
e, como agora, com o caso das ora Recorrentes se prevê, será indubitavelmente «mais cedo»,
e tal como antes sucedeu com o casamento inter-racial, com reconhecimento do direito de voto às mulheres e até com a própria restauração em Portugal, há pouco mais de três décadas, de um «verdadeiro» Estado de Direito Democrático,
também aos homossexuais será reconhecido que o direito a «contrair casamento em condições de plena igualdade»
existe já, e há muito, e está até constitucionalmente garantido.

Assim,
e como uma vez mais nos ensina Isabel Moreira,
«tem-se presente que a crescente tutela constitucional das posições individuais mais susceptíveis à discriminação não significa que todo e qualquer plano de vida tem de merecer acolhimento legislativo.
«Não é disso que se trata. Ao Estado (e ao Direito) cabe, por um lado, não interferir na esfera de autonomia de cada um, nomeadamente abstendo-se de emitir comandos, penalizadores de comportamentos, baseados em determinações morais e, por outro lado, identificar fenómenos sociais e institucionais como relevantes e merecedores de enquadramento jurídico.

Por isso,
«se por hipótese três pessoas sexualmente envolvidas se quiserem casar, o Estado abstém-se de valorar a pretensão e o comportamento das pessoas em causa, mas não está obrigado a consagrar o casamento entre várias pessoas.
«E por quê? Porque numa hipótese como a aventada, não existe um fenómeno socialmente relevante.
Com efeito,
«o Estado, através do Direito, não tem de dar resposta jurídica a todos os modos de vida que a sociedade, na sua diversidade, albergue. Simplesmente, se consagra na Constituição o direito de contrair casamento, num momento em que o fenómeno social traduzido nas ligações homossexuais sem protecção jurídica equivalente, em número e visibilidade a dispensarem amostragem não pode deixar de intervir no sentido da igualdade».

Assim,
e continuando a seguir o quanto nos ensina Isabel Moreira,
não podemos deixar aqui de nos referirmos uma vez mais à expressa inclusão na revisão de 2004, no artigo 13.º da CRP, da orientação sexual como critério proibitivo de discriminações.

«Claro que poderá dizer-se que se tratou de uma mera especificação do que já estava implícito no princípio da igualdade.
Mas, acontece simplesmente que
«o debate público em torno desta alteração mostrou bem como a mesma foi mais do que uma especificação.

Tanto assim que
foram os próprios adversários da nova redacção do artigo 13.º (com um par de declarações de voto nesse sentido mas que, no conjunto da aprovação, ainda assim, por unanimidade na Assembleia da República, nem sequer de um significado meramente residual se revestiram),
quem alertou expressamente para o estatuto de igualdade que a nova formulação constitucional – o que unanimemente era logo constatável – conferia aos homossexuais, com projecção, nomeadamente, em matérias historicamente reservadas aos heterossexuais.

Ora,
dentro de um quadro de coerência normativa jusfundamental, poderá a lei continuar a definir como queira os requisitos do casamento?
«Será a definição da titularidade do direito fundamental, do ponto de vista da orientação sexual, matéria de requisito?

De facto, e como já se referiu,
mesmo «abstraindo da lei vigente, a CRP confere a todos o direito de contrair casamento (...) e «evoluiu no sentido específico de protecção dos direitos que possam ser afectados por força da orientação sexual do titular.Fê-lo no artigo 13.º e no artigo 26.º».
«A dignidade da pessoa humana concretiza-se num imperativo de igual tratamento das pessoas, estando expressamente proibida a discriminação com base na orientação sexual, ao que acresce o direito de todos de contrair casamento, num sentido de universalidade».

Ora,
e sendo óbvia e patente a inequivocidade dos argumentos acima expendidos, ao que acrescerão os limites às restrições aos direitos fundamentais do artigo 18.º da CRP,
não se tornam atendíveis, nem sequer mesmo compreensíveis, os argumentos de um legislador que, impávido e sereno perante um grupo significativo da sociedade portuguesa, persiste em impedir-lhes o acesso ao casamento.
É aqui que Isabel Moreira nos traz uma lúcida e esclarecedora enumeração de alguns argumentos, normalmente invocados como fundamento por quem recusa admitir a inconstitucionalidade das normas em questão.

Assim,
«a) A moral dominante:
«Para além de ser duvidoso que a sociedade ainda seja a que suportou a actual solução legislativa, já sabemos que este fundamento, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, é constitucionalmente inadmissível».

«b) O legislador é livre, perante a remissão do n.º 2 do artigo 36.º da CRP, de manter o figurino legal de casamento de acordo com o seu significado histórico:

Ora,
«Perante a evolução da Constituição é inadmissível ter-se a titularidade de um direito como requisito que pode assim pode ser aniquilado sem qualquer fundamentação constitucional adicional.
E, mesmo postos perante a nova realidade de protecção da Uniões de facto saída da Lei n.º 7/2001 de 11 de Maio, persistiria óbvia a violação do princípio da igualdade na atribuição do direito de contrair casamento exclusivamente a pessoas de sexo diferente.
Pois, por um lado,
«se alguma protecção jurídica existe, certo é que duas pessoas de sexo diferente têm dois regimes jurídicos à sua disposição – o da união de facto e o do casamento –, enquanto que duas pessoas do mesmo sexo que pretendam fazer uma vida comum só contam com o que do ponto de vista legal, na sua situação de facto, seja relevante.

Mas mais ainda:
«a protecção jurídica decorrente da união de facto é claramente deficitária, se comparada com a resultante do casamento.
E isso mesmo resulta de jurisprudência deste Tribunal Constitucional, como por exemplo do Acórdão n.º 195/2003, de 9 de Abril, (a propósito do reconhecimento do direito à pensão de sobrevivência no caso da união de facto) e que, com Isabel Moreira, citamos:
“importa, aliás, recordar que, por exemplo, quem vive em situação de união de facto também não é herdeiro (nem legitimário, nem legítimo) do de cujus com quem convivia, apenas tendo um direito a exigir alimentos da herança, se não os puder obter das pessoas referidas no artigo 2009.º, n.º 1, alíneas a) a d) do Código Civil. (…)
“Na verdade, trata-se, aqui, tal como na distinção da posição sucessória do cônjuge e do convivente em união de facto, justamente de um daqueles pontos do regime jurídico em que o legislador trata mais favoravelmente a situação dos cônjuges, não só visando objectivos políticos de incentivo ao matrimónio – enquanto instituição social que tem por criadora de melhores condições para assegurar a estabilidade e a continuidade comunitárias –,
«mas também como reverso da inexistência de um vínculo jurídico, com direitos e deveres e um processo especial de dissolução, entre as pessoas em situação de união de facto.
“Tal diverso tratamento jurídico não pode considerar-se destituído de fundamento constitucionalmente relevante, não podendo divisar-se na norma em apreço violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Lei Fundamental”.

Assim,
e tal como nos diz Isabel Moreira,

«um dos pontos importantes salientados pelo Tribunal Constitucional neste Aresto, prende-se com o facto de a maior protecção jurídica do casamento vir associada a um acto de vontade pelo qual as pessoas se vinculam a um contrato, facto ao qual o Direito não é indiferente:
“existem diferenças importantes, que o legislador pode considerar relevantes, entre a situação de duas pessoas casadas, e que, portanto, voluntariamente optaram por alterar o estatuto jurídico da relação entre elas mediante um “contrato (…)”, como se lê no artigo 1577.º do Código Civil –, e a situação de duas pessoas que (embora convivendo há mais de dois anos “em condições análogas às dos cônjuges”) optaram, diversamente, por manter no plano de facto a relação entre ambas, sem juridicamente assumirem e adquirirem as obrigações e os direitos correlativos ao casamento”.

Ora,
do texto transcrito é perfeitamente constatável que esta liberdade de escolha, que evita um juízo de inconstitucionalidade,
e que foi precisamente o que o Tribunal Constitucional pretendeu expressamente afastar,
não existe, na verdade, no que toca aos casais homossexuais.

Com efeito,
ocorrendo uma realidade fáctica precisamente idêntica à descrita no acórdão, e que o Tribunal Constitucional considerou merecedora de um juízo de inconstitucionalidade,
mas onde, desta vez, as pessoas em questão, pretendam agora «optar por um estatuto jurídico sólido, estável, com direitos e deveres que justifiquem a protecção que hoje não têm, a lei nega-lhes essa possibilidade»,
precisamente porque... são do mesmo sexo.

Mas Isabel Moreira vai mais longe:
«a discriminação está tão enraizada, passe a expressão, que o próprio Tribunal Constitucional começa por explicar que o regime legal de enquadramento das uniões de facto é, para efeitos da sua previsão, independente do sexo das pessoas em causa,
«para, depois, fundamentar a diferença da solução legal respeitante à pensão de alimentos na circunstância de as pessoas poderem escolher entre a união de facto e o casamento.

Mas,
acontece precisamente que, também aqui, e do mesmo modo,
«há uma parte considerável das pessoas abrangidas pelo regime jurídico da união de facto que não têm essa escolha.

Finalmente, ainda um outro argumento:
é que o legislador está também obrigado «a perseguir o comando constitucional da igualdade.
«E deve fazê-lo respeitando o «Princípio da Proporcionalidade».

Pois,
E enquanto tal não sucede, isto é, enquanto persistir a proibição de acesso ao casamento por parte do casais homossexuais,
«o legislador está em manifesta inconstitucionalidade por deixar a descoberto, sem fundamentação para tanto, uma categoria de pessoas.

Mas mais ainda,
e como se não bastasse,
verifica-se que, enquanto mantém tal persistência de proibição de acesso ao casamento o legislador vai, como que compensando os casais homossexuais por essa exclusão, “oferecendo-lhes” aqui e ali, e de forma avulsa, algumas garantias esparsas
muitas vezes desconexas entre si,
e, tantas vezes, vazias de verdadeiro significado prático.

Ora,
e como é por demais óbvio,
esta atitude merece como que uma dupla censura de inconstitucionalidade pois, nesse caso,
«viola simultaneamente o «Princípio da Adequação», já que, ao criar, sem fundamentação plausível, uma categoria à parte da do casamento para os homossexuais está a prosseguir da pior forma o objectivo e comando constitucional da igualdade, por, na solução encontrada, mais uma vez traçar... uma discriminação.

Ou seja,
só será possível evitar essa, agora acrescida, desconformidade constitucional quando a igualdade entre casais homossexuais e heterossexuais for promovida, e da única forma que se crê possível: que é precisamente o seu enquadramento no mesmo e preciso instituto que é posto à disposição de todos os demais cidadãos.

Mas não é tudo:
do ponto de vista da violação do «Princípio da Igualdade», geradora de inconstitucionalidade material, deve ter-se presente, como Jorge Pereira da Silva, que com Isabel Moreira citamos, que:

«“o princípio da igualdade não tem mais uma natureza puramente negativa, como proibição de perturbações arbitrárias da igualdade jurídica, assumindo crescentemente uma dimensão positiva que se traduz na imposição de determinadas soluções legislativas. A afirmação e consolidação dessa dimensão positiva conduzem, depois, num segundo momento, ao problema da subjectivização do princípio (objectivo) da igualdade. Mais precisamente, a transmutação subjectiva do dever de reposição da igualdade permite falar de verdadeiros direitos subjectivos”.

Ou seja:
Por um lado,
«do ponto de vista da dimensão negativa do princípio da igualdade, enquanto a mesma proíbe discriminações arbitrárias, é esperada alguma argumentação no sentido de se considerar que é um dado social e jurídico inegável o casamento enquanto realidade vocacionada para heterossexuais com um regime jurídico em parte arquitectado em torno da normal possibilidade de procriação.
«Isto, pese embora a clara distinção constitucional entre o conceito de casamento e de família.

Neste sentido,
deparamos com o argumento de que

«a não atribuição do direito de contrair casamento aos homossexuais não seria uma discriminação arbitrária, pelo que o princípio da igualdade não estaria a ser violado pelo legislador.
Mas,
«simplesmente, se por hipótese – a que se não cede –, se aceitasse essa “natural” diferença entre as realidades referidas, sempre teríamos de encontrar fundamento constitucional para autorizar o legislador a discriminar os homossexuais em termos de titularidade do direito de contrair casamento, quando feito um juízo comparativo com os heterossexuais que têm essa titularidade e podem exercer esse direito,
«como acontece, por exemplo, nas situações de «casamentos urgentes» (nos termos do artigo 1590.º do Código Civil ou de «casamentos in articulo mortis» (nos termos do artigo 1599.º do Código Civil).

De facto, também destes exemplos
se deixa à saciedade demonstrado que da indiscutível separação constitucional entre os conceitos de família e de casamento resulta ainda uma nova e necessária consequência, que reside numa outra nova dissociação, quer civil quer Constitucional, agora entre casamento e procriação.

Mas mais:
se verificarmos bem e se, ainda assim, se persistir no argumento de uma associação conceptual entre casamento e procriação,
então teríamos de resolver a perplexidade com que, a partir de tal associação, necessariamente passaríamos a deparar, e que resultaria de uma injustificável, porque incompreensível contradição entre as próprias disposições normativas do Código Civil,
mais exactamente uma contradição entre, por um lado, a previsão de casamentos entre pessoas inférteis, de casamento urgentes ou ”in articulo mortis”, isto é, celebrados quando um dos nubentes está à morte,

e, por outro lado,
a própria definição de «casamento» constante do artigo 1.577º do Código Civil como um “contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida”.

Numa palavra,
«à luz da proibição constitucional de discriminação arbitrária fundada na orientação sexual, aplicada à decisão do legislador de vedar, ou não, aos homossexuais a celebração do casamento, temos por certo que não há, fundamento admissível para este tratamento diferenciado».

Finalmente,
mostra-nos Isabel Moreira o terceiro dos argumentos que considera serem normalmente utilizados por quem se recusa a reconhecer a inconstitucionalidade das normas aqui em questão:

«c) O legislador, quando muito, está em inconstitucionalidade por omissão, mas pode criar um regime diferente do casamento até porque os objectivos deste instituto não quadram bem com casais homossexuais:

Ora,
é bem verdade que o Tribunal Constitucional não está neste autos perante a verificação de uma inconstitucionalidade por omissão.

Mas, antes sim,
do julgamento de uma inconstitucionalidade por acção.
Contudo,
mesmo que por mera hipótese admitíssemos – o que já acima se deixou claro que não é o caso – que o legislador seria livre para criar um novo contrato análogo ao do casamento, para pessoas do mesmo sexo, «o facto é que, à data, não existe esse regime jurídico.»

Pois,
«se o Tribunal Constitucional se limita a verificar (não verificando, por impossibilidade processual) uma inconstitucionalidade por omissão, deixa de cumprir a função que lhe está especialmente atribuída em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, de cujo resultado depende a garantia dos direitos dos particulares.

De facto,
é esse precisamente o objectivo do recurso de constitucionalidade, mais concretamente o recurso de decisões negativas de constitucionalidade, precisamente os que mais aproximam a Constituição do cidadão comum,
«o que a fiscalização abstracta da constitucionalidade não pode oferecer aos particulares.
Por esse motivo,
«a pior decisão, no sentido exposto, que o TC poderia proferir seria considerar que há uma inconstitucionalidade por omissão, pelo que nada dali resultaria.

Mas,
«é bom que se clarifique que a haver alguma omissão, ela seria relativa, porque há uma actuação positiva do legislador, essa plasmada nas normas civilísticas aqui apreciadas.

Com efeito,
«tais normas criam uma discriminação infundada entre pessoas.

Por isso mesmo, Carlos Blanco de Morais, que com Isabel Moreira aqui citamos, afirma que

«”quanto às omissões relativas, estas só num plano figurativo ou referencial são genuínas omissões. Na verdade, estamos diante lacunas axiológicas, onde o conteúdo incompleto de um regime legal positivo afronta a Constituição pelo facto de o silêncio parcial de algumas das suas normas gerar uma depreciação indevida de garantias, ou uma situação intoleravelmente discriminatória, à luz do princípio da igualdade” »

Só que,
além do mais, acontece ainda que o Código Civil não se limita a prever o casamento entre pessoas de sexo diferente,
«o que poderia ser reparado com uma sentença aditiva simples, sem ablação do texto.
«Estar-se-ia a julgar inconstitucional a norma implícita de exclusão dos homossexuais do instituto do casamento, o que redundaria numa inconstitucionalidade por acção.
Mas,
«as normas que nos ocupam são normas de exclusão explícita de uma categoria de pessoas, o que, por maioria de razão, não pode, em circunstância alguma, deixar de ser enquadrado no tipo “inconstitucionalidade por acção”.

«A alternativa a uma decisão que julgue inconstitucionais aquelas normas, sem mais, só pode ser, na linha do que já foi feito pelo Tribunal Constitucional, uma sentença demolitória com efeitos aditivos, com ablação de texto. Não há, pois, como esconder uma “não-decisão” com recurso à figura aqui inaplicável da omissão.

Por outro lado,
É ainda certo que de um ponto de vista da dimensão positiva do princípio da igualdade, a Constituição vai ainda mais longe:
«ao exigir que façamos a leitura conjugada do princípio da igualdade com o direito para cujo tratamento legislativo o primeiro exige a desconsideração de diferenciações arbitrárias.

Assim,
«a reinterpretação do direito de contrair casamento à luz do direito ao livre desenvolvimento da personalidade numa óptica de concretização actualizada da dignidade da pessoa humana recorta um direito, liberdade e garantia pessoal das pessoas do mesmo sexo a contraírem casamento e, como tal, directamente aplicável, ex vi n.º 1 do artigo 18.º da CRP e naturalmente preferente à lei, nos termos do mesmo preceito constitucional.
Deste modo,
então,
e como conclusão do seu «Parecer», Isabel Moreira afirma
«a inconstitucionalidade das normas resultantes da leitura conjugada do artigo 1577.º do Código Civil e da alínea e) do artigo 1628.º do mesmo Código, nos termos das quais duas pessoas do mesmo sexo não podem contrair casamento e, se o fizerem, é o mesmo tido por inexistente:
- por violação dos princípios da dignidade da pessoa humana (1.º CRP),
- por violação do princípio da igualdade – na vertente de proibição de discriminações com fundamento na orientação sexual – (13.º, n.º 2, CRP),
- por violação do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, e
- por violação e do direito fundamental de contrair casamento (36.º, n.º 1, CRP)».



Ora,
e aqui chegados,
desde logo verificamos que, pretendendo agora centrar-se particularmente num dos aspectos jurídicos em discussão, como seja o «valor simbólico» do casamento, Pedro Múrias, a cuja opinião uma vez mais aqui, e com a devida vénia, recorremos,
defende ser esse, na verdade, o aspecto fulcral do problema, pois que é certo que a sua consideração seria suficiente, só por si, para considerar inconstitucional a referida restrição.
Assim,
e neste particular, começa por dizer-nos que
«o problema político e jurí­dico do casamento entre pessoas do mesmo sexo é o problema de um dado tipo de reconhecimento e de legitimação.
«...os opositores do casamento entre pessoas do mesmo sexo não pretendem especial­mente negar aos casais homossexuais este ou aquele direito patri­mo­nial.
«Pretendem sim, acima de tudo, que duas pessoas do mesmo sexo não se identifiquem como casadas, ou como verda­dei­ra­mente casadas ».

De facto,
e não faltando quem, opinando contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo, defenda que as pessoas do mesmo sexo não precisariam de casar para, por exemplo, obter com um testamento os respectivos efeitos de direito sucessório,
então
«e se os efeitos jurí­dicos mais visíveis do casamento podem ser produzidos de outras formas,
logo,
«a ideia de negar o casamento aos homossexuais visa sobre­tudo negar­‑lhes uma palavra, um qualificativo, impor­‑lhes uma distinção.

Assim
«a luta política quanto ao casamento de pessoas do mesmo sexo é uma luta pelas palavras. Como a palavra em causa está sujeita a uma regulação legal, salvo no quadro de certas mundividências religiosas, a luta pelas palavras gera natu­rais litígios jurí­dicos, forçosa­mente sujeitos aos prin­cí­pios cons­ti­tu­cio­nais. Nem outra coisa decorreria da alusão expressa ao casamento no texto da Cons­ti­tui­ção por­tu­guesa».

Por este motivo, Pedro Múrias afirma que o cerne da questão submetida ao Tri­bu­nal Cons­ti­tu­cio­nal por­tu­guês com estes autos poderia considerar-se «simbólico» embora discutido e opinado
«à luz da lei fun­da­men­tal sobre a distinção simbólica radical pretendida pelo Código Civil. O argu­mento de que os casais homossexuais dispõem de «outros meios de tutela jurídica» sempre seria uma forma de encapotar o problema mais importante.

Numa palavra,
Pedro Múrias conclui que negar aos casais do mesmo sexo o acesso ao bem jurí­dico, inegavelmente «simbólico», que o casamento constitui é, pois, cons­ti­tu­cio­nal­mente inadmissível.

Do mesmo modo,
e por isso mesmo, seria para aquele autor igualmente óbvio que «um sistema de «uniões civis» com direitos e obri­ga­ções idênticos aos do casamento, mas não reconhecidas como casamento — sistema adoptado na Dinamarca e, depois, em vários países — seria cristalinamente incons­ti­tu­cio­nal entre nós».

De facto,
«A argu­men­ta­ção jurídica, fora dos casos escolares em que «basta ler a lei», é difícil, frágil, sujeita a dúvidas e a inevitáveis enviesamentos.

Até por que
«O Tri­bu­nal Cons­ti­tu­cio­nal conhece melhor do que ninguém o peso acrescido de decidir em matérias com reflexos políticos imediatos, longe das fun­da­men­ta­ções frias e quase more geometrico que algumas áreas do direito admitem.
«O certo é que aqueles enviesamentos devem ser combatidos, tanto quanto possível, e a difi­cul­dade da argu­men­ta­ção não nos exime do dever de fundamentar as soluções.

Assim,
e passando o combate aos enviesa­mentos pela sua identificação, desde logo poderia encontrar-se o primeiro deles na
«tentação do pseudo-argumento da evidência, cuja inva­li­dade decorre simples­mente do facto de pessoas diferentes notarem diferentes evidências.
Ou seja,
«contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo, quer no plano político quer no plano jurídico, dir-se-á que seria evidente que o casamento pressupõe um homem e uma mulher,
«que a dualidade dos sexos seria da essência da própria ideia de casamento,
«que o casamento, por definição, pressuporia um homem e uma mulher,
«que um casamento entre dois homens ou entre duas mulheres seria uma aberração, jamais reconhecida nalguma «nação civilizada».
Contra esta linha de argumentação, dir-se-á que
«é evidente a discriminação gratuita e a exclusão social explícita na proibição do casamento homos­sexual, e que proibir o casamento entre pessoas do mesmo sexo não se distingue muito de vedar o uso de certas roupas por homossexuais ou de proibir o casamento entre portugueses e espanhóis».
Pois,
«Argumentar com a evidência é perguntar: «Então não vês?»

Ora,
«a afirmação de evidência não é argu­mento perante a afirmação de uma evidência simétrica, e o intuicionismo moral e jurí­dico, por isso mesmo, tem hoje poucos seguidores.
É que
«os argu­men­tos da evidência contrária são facilmente rebatíveis e, em boa ver­dade, deveria ser tão desnecessário argumentar a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo quanto a favor do casamento entre pessoas de «raças» diferentes.

Assim se considerando,
e uma vez que «as evidências não nascem do nada»
e que, em direito «nascem de uma cultura jurídica e do conhe­ci­mento efectivo dos casos,

então, e por isso mesmo,
«o que se pede aos juizes do Tri­bu­nal Cons­ti­tu­cio­nal é que considerem os milhares de casais de homens ou de mulheres por­tu­gueses que, com a falta de originalidade própria da vida real, querem simplesmente casar.

Depois,
poderão ainda encontrar-se outros exemplos típicos de «enviesamentos» no preconceito e na parcia­lidade.
Assim,
e ainda que se admita a impos­si­bi­li­dade de eliminar todos os enviesamentos, afinal próprios da condição humana,
e também que «a objec­ti­vi­dade perfeita é inalcançável»
ainda assim, o que é facto é que «o decisor deve tentar aproximar­‑se dela tanto quanto possível».

Deste modo, e neste particular,
«um enviesamento específico» será a homofobia,
«que é um preconceito e uma atitude equivalente, por exemplo, ao machismo e à xenofobia».

Com efeito,
«as socie­dades que conhecemos são homofóbicas, a educação de todos nós foi homofóbica, a lin­gua­gem corrente é homofóbica. Basta pensar nos termos insultuosos que designam os homossexuais, sem haver insultos simétricos para os heterossexuais.
«As crianças ensinam umas às outras, quando não o ouvem dos adultos, que não há nada pior do que ser «maricas». O preconceito agrava­‑se, por exemplo, por a mesma palavra querer dizer «homossexual» e «medroso».
«Todos somos homófobos. O autor destas linhas em defesa jurídica do casamento entre pessoas do mesmo sexo não deixa de notar em si, pelo menos, algum «descon­forto estético» perante demonstrações de amor erótico homossexual ou repre­sen­ta­ções artísticas da homossexualidade.

Ora,
acontece que, precisamente,

«o reconhecimento da nossa condição homofóbica é indispensável à boa decisão jurídica do caso que se apresenta.

De facto,
«a sensação de evidência que alguém tenha contra a admissibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo, se não puder ser fundamentada de outra forma (..) tem de ser explicada como mani­fes­tação de homofobia.
«O condicionamento preconceituoso no sentido de sentir a homossexualidade como uma coisa má e repugnante gera de imediato essa impressão de evidência.
Por outro lado, é ainda verdade que
«não há um enviesamento simétrico ao da homofobia. Daqui resulta que o ónus da argu­men­tação quanto ao casamento entre pessoas do mesmo sexo cabe à tese proibitiva»,
até porque a proibição em causa vem «comprimir um direito fun­da­men­tal, negando­‑o a um grupo de pessoas»
e também porque
«a proibição do casamento homossexual é um mero elemento indistinto de uma cultura homofó­bica em geral».

Depois,
é ainda inegável que todas as distinções doutrinais, jurisprudenciais ou legais em face das preferências sexuais das pessoas, devem ser explicadas enquanto verdadeiras «mani­fes­tações do preconceito e da aversão homofóbicos»,
muito mais se forem anteriores à Cons­ti­tui­ção democrática, como o é, precisamente... o Código Civil.

Além disso,
«a “inexis­tên­cia” do casamento entre pessoas do mesmo sexo e a defi­ni­ção do casamento como um contrato entre pessoas de sexo diferente
«são ins­tru­mentos de negação intencional e, aqui, inapelavel­mente homofóbica da natureza de família a todas as relações homos­sexuais».

Ora,
até a doutrina mais avessa às pretensões dos homossexuais em matéria matri­mo­nial (como a de Jorge Miranda e Rui Medeiros)
«reconhecem hoje que a Cons­ti­tui­ção protege tam­bém as famílias constituídas sobre uma relação gay ou lésbica.
Até por isso,
é inequívoco que
«a homofobia (...) do Código Civil — que permanece, pois, como seu subtexto e facilita extrapolações inter­pre­ta­tivas indesejáveis — vem fragilizar uma segunda vez um eventual juízo de cons­ti­tu­cio­na­li­dade a seu respeito.

Mas mais:
mesmo que em caso de dúvida, ainda assim,
«não pode decerto salvar­‑se uma lei que, além daquilo que pro­pria­mente regula, exprime uma concepção incons­ti­tu­cio­nal e foi dela veículo privilegiado».

Por outro lado,
e sendo certo que a segunda parte do n.º 3 do artigo 9º do Código Civil impõe «um ónus acrescido de argumentação» a qualquer tese jurídica que defenda a menor correcção das palavras da lei, isto é,
«atribui à “letra da lei” um valor presuntivo»,
então, esse «ónus» revestir-se-á de especial significado no que concerne ao texto da norma do n.º 2 do artigo 13º da Constituição, pois que é evidente que a enumeração que ali se encontra não é irrelevante nem arbitrária.
Ninguém discordará, pois, que os casos ali arrolados serão, sem qualquer sombra de dúvida «os que mais flagrante­mente são recusados pelo legislador constituinte».

Por exemplo,
«a idade não consta do art. 13.º, n.º 2, porque são muitas e facilmente alargáveis as dis­po­si­ções legais perfeitamente justificadas que distinguem em função da idade.

Contudo,
«tam­bém são facilmente imagináveis distinções legais em função da idade contrárias ao prin­cí­pio da igual­dade.
Ou seja,
«a idade não consta do art. 13.º, n.º 2, porque as distinções em função da idade não são em prin­cí­pio incons­ti­tu­cio­nais.

Mas,
pelo con­trá­rio,
a «raça» vem referida no art. 13.º, n.º 2, porque são poucas, e a necessitar de especial justifi­cação, as distinções legais cons­ti­tu­cio­nal­mente admis­sí­veis em função da «raça».
Assim,
«e por prin­cí­pio, é incons­ti­tu­cio­nal uma lei que determine a sua apli­ca­bi­li­dade pela «raça» dos destinatários.
Pois que
«esta é a con­se­quên­cia de se legislar através de exemplos com os «casos mais flagrantes» de uma ideia geral orientadora, ou seja, através de exemplos­‑padrão.
Só que,
a expressão «ou orientação sexual» veio a ser incluída no texto do artigo 13.º, n.º 2 da Constituição.
Ainda assim,
e como já vimos nestas alegações, alguns autores defendem que a inclusão não teria alterado em nada o respectivo regime, e mais não fez do que «explicitar» o que já resultava da Cons­ti­tui­ção.
Ora,
vingando assim, esta tese «revoga toda a enumeração do artigo 13.º, n.º 2» da Constituição.

Muito pelo contrário,
«a presença da «orientação sexual» no art. 13.º, n.º 2, ajuda decisivamente os juizes perante o oceano de argu­men­ta­ção imaginável quanto a este aspecto do prin­cí­pio da igual­dade.
«Ela faz presumir que toda a distinção legal em função da homos­sexualidade é incons­ti­tu­cio­nal.
«Em prin­cí­pio, viola a igual­dade toda a lei que faça a aplicação de um preceito seu depender da homos­sexua­lidade ou da heterossexualidade.
«A proi­bição do casamento entre pessoas do mesmo sexo é, à partida, incons­ti­tu­cio­nal, só não o sendo se houver argu­men­tos claros e concludentes que fundem a distinção».
«O ónus argu­men­ta­tivo, vemos de novo, recai em absoluto sobre os defensores de que as dis­po­si­ções do Código Civil em causa seriam cons­ti­tu­cio­nal­mente válidas.

Depois,
e neste particular passo da sua posição argumentativa, vem ainda Pedro Múrias afirmar, com a clareza e o brilhantismo que lhe são peculiares que, como será indiscutível,
«o pen­sa­mento ana­ló­gico é essencial ao direito, como a outros temas nor­ma­tivos e, em boa ver­dade, a todos os temas.

Ou seja,
«se duas questões têm uma estrutura idêntica ou se referem a objectos com as mesmas pro­prie­dades observáveis relevantes, a ana­lo­gia sugere, torna plausível uma solução idêntica.
Mas,
«se a solução é idêntica ou não, isso dependerá das coisas tal como elas são. Nas ciências, portanto, a ana­lo­gia é apenas um dis­po­si­tivo heurístico.

Contudo,
«em direito, a ana­lo­gia é mais do que isso. Se duas questões idênticas se referem a casos com as mesmas carac­te­rís­ticas observáveis relevantes, a ana­lo­gia impõe a mesma solução.
Pois que
«as coisas tal como elas são não têm mais nada a dizer. Para usar um chavão, se os factos são a todos os títulos idênticos, o valor é neces­sa­ria­mente o mesmo.

Ora,
«a questão cons­ti­tu­cio­nal do casamento entre pessoas do mesmo sexo suscita três ana­lo­gias a que é preciso atender:
«a ana­lo­gia his­tó­rica com as polémicas da intro­du­ção do casamento civil e das alte­ra­ções mais relevantes ao regime matrimonial,
«a ana­lo­gia comum com a incons­ti­tu­cio­na­li­dade da proibição do casamento entre pessoas de «raças» diferentes
«e a ana­lo­gia ad absurdum ou de rampa escorregadia com a cons­ti­tu­cio­na­li­dade — ao menos aparente e que se dará por certa — da proibição de casamentos incestuosos.

Assim, e em primeiro lugar,
«a ana­lo­gia his­tó­rica é instrutiva.
«A ins­ti­tui­ção do casamento civil mudou os pres­su­postos do casamento, alargando­‑os ou substituindo­‑os conforme os países.
«Gerou discussões imensas e acaloradas sobre as relações entre o Estado e as igrejas e sobre a natureza do casamento, que passava de sacramento, embora contratual, a um «mero» contrato civil, e de ins­ti­tuto religioso, embora jurí­dico (canónico), a ins­tru­mento laico disponível para agnósticos e ateus confessos.

Mas, na verdade,
«todavia, o novo casamento continuou a ser reconhecido como casamento, em todas as dimensões jurídicas e sociais, sem produzir qualquer momento de ruptura.
«As alte­ra­ções ao regime do casamento, desig­na­da­mente a facilitação progressiva do divórcio, até aos nossos dias, eliminando a definibilidade do casamento como «contrato perpétuo» (cf. ainda o art. 1056.º do Código de Seabra), tam­bém não viriam a impedir esse reconhecimento continuado da figura.
«Em ambos os casos, mostra­‑se a dimensão simbólica do casamento, que resistiu a alte­ra­ções de «natureza» e de «defi­ni­ção» sem deixar de ser casamento.
«...o casamento hoje não é a mesma figura que tínhamos no século xix. A mudança no casamento... resultou da alte­ra­ção da eficácia deste contrato, quer pela referida facilitação do divórcio, quer, mais tarde, pela impo­sição cons­ti­tu­cio­nal da igual­dade entre homens e mulheres.

Ou seja,
quer isto dizer que
«a mudança num ins­ti­tuto jurídico ocorre primordialmente pelos seus efeitos, pelo seu alcance nos direitos e deveres das pessoas,
«e não pela maior ou menor amplitude dos casos a que se aplica.

Depois,
«o alargamento do casamento às pessoas sem religião gerou a maior resistência, desde logo por parte da igreja católica,
«mas a ver­da­deira metamorfose do casamento ocorreu pela alte­ra­ção progressiva do regime aplicável às pessoas casadas.

Uma vez mais, quer isto dizer que
«o casamento entre pessoas do mesmo sexo, tal como o casamento civil, em nada altera as carac­te­rís­ticas relevantes do ins­ti­tuto, que se define pelas suas con­se­quên­cias.
«Só a mudança de efeitos altera a ins­ti­tui­ção.
«A mudança dos pres­su­postos altera a relação da gene­ra­li­dade das pessoas com a ins­ti­tui­ção, dando­‑lhes maior ou menor acesso.

Por outro lado,
«a semelhança entre a «questão» do casamento civil e a «questão» do casamento entre pessoas do mesmo sexo sugere, é claro, uma outra ana­lo­gia.
«...Entre o surgimento do casamento civil e o do casamento gay ou lésbico há, entretanto, a diferença his­tó­rica de mais de um século. O que foi político e, inclusive, revolucionário, é agora assente e cons­ti­tu­cio­nal.
«O casamento homossexual é apenas o último estádio do casamento civil».

Depois,
e em segundo lugar,
«mais importante é a ana­lo­gia entre a proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo e a proibição do casamento entre pessoas de raças diferentes. Em ambos os casos, a proibição resulta, sociologica­mente falando, de um preconceito estabelecido e de uma atitude de distinção opressiva de grupos de pessoas.
«O racismo, num caso, a homofobia, no outro.
Mas,
«Quando se diz que a proibição do casamento homossexual resulta da homofobia, não pretende dar­‑se a conclusão como argu­mento. Trata­‑se, pelo con­trá­rio, de uma mera explicação causal.
Ao contrário,
«numa socie­dade em que a identidade homossexual e as relações amorosas homossexuais forem vistas como a mais natu­ral das coisas... o casamento para ambos os grupos será um produto esperável.
Por seu lado,
«o racismo e a homofobia são em si mesmos homólogos absolutos.

«São sistemas de opressão... através da identificação indelével de grupos de pessoas consideradas piores e repugnantes.
«As proibições do casamento inter­‑racial e do casamento homossexual foram apoiadas numa argu­men­ta­ção de natureza, em especial da natureza das coisas.

Assim, e a este propósito,
«transcrevam­‑se umas linhas da sentença de um tri­bu­nal inferior (que acabou revogada pelo Supremo americano no caso Loving v. Virginia, de 1967), em que se estabeleceu a incons­ti­tu­cio­na­li­dade da proibição do casamento inter­‑racial:
«Almighty God created the races white, black, yellow, malay and red, and he placed them on separate continents. And but for the interference with his arrangements there would be no cause for [interracial] marriages. The fact that he separated the races shows that he did not intend for the races to mix.»

Ora,
«“a palavra «Deus” pode, evidentemente, ser aqui substituída por «natureza» sem prejuízo para o argu­mento.
«…a invocação da «natureza» contra os homossexuais, como contra todos os actos sexuais que não sejam a penetração vaginal heterossexual, é um dado básico na história deste género de argu­men­ta­ção.
«A confusão filosófica é a de pensar que, ao lado das leis da natureza correspondentes a regularidades descobertas e teorizadas pelas ciências empí­ricas, haveria ainda leis da natureza com o conteúdo de proibições.

Ou seja,
«haveria proibições na natureza inde­pen­dentes dos valores e dos prin­cí­pios morais, políticos ou jurí­dicos objecto de discussão na moral, na política e em direito.
«Nor­mal­mente, estas proibições assentam no contra­‑senso de que o que é menos fre­quente seria proibido ou numa certa efabulação denegridora daquilo que se pretende proibir ou distinguir.
«Por exemplo, no C. C. Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela, como argu­mento central para aquela defi­ni­ção de casamento, sustentava­‑se que não seria possível a «plena comunhão de vida» entre pessoas do mesmo sexo.
«O argu­mento soa­‑nos hoje pitoresco por nem sequer ser fácil atingir aquilo em que os autores estariam a pensar… (...)

Em suma,

«não encontramos, afinal, o menor desvio à ana­lo­gia entre a proibição do casamento entre pessoas de raças diferentes e a proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo.
«A história é a mesma, a explicação sociológica é a mesma, são os mesmos argu­men­tos e as mesmas razões de prudência, em atenção ao interesse das crianças.

Assim,
«O juízo de incons­ti­tu­cio­na­li­dade não pode ser diferente».

Finalmente,
«a terceira ana­lo­gia suscitada pela questão cons­ti­tu­cio­nal do casamento entre pessoas do mesmo sexo chama à colação os chamados impe­di­mentos dirimentes relativos por parentesco próximo ou afinidade, ou seja, a expressão legal da condenação do incesto.
«Não se questiona, a bem da argu­men­ta­ção, a cons­ti­tu­cio­na­li­dade destas proibições.

Pois,
«O incesto promove juízos nega­tivos sobre actos, só mediatamente sobre as pessoas que os praticam, ao con­trá­rio do racismo e da homofobia.
«Simetricamente, mas mais importante, um afecto incestuoso não é uma condição identitária, ao con­trá­rio da raça e da orientação sexual.

«A orientação sexual, como a etnia, identifica cada pessoa como membro de um grupo socialmente distinto e permanece, tendencialmente, ao longo de toda a vida dessa pessoa. Faz parte daquilo a que cada um chama a sua natureza.
Assim,
«a autocensura de um amor incestuoso corresponde ao juízo de que se comete um erro;
«a autocensura de um amor homossexual corresponderia ao juízo de que se é um erro.

Em suma:
«o casamento entre pessoas do mesmo sexo está para o casamento heteros­sexual como o casamento civil esteve para o casamento religioso
«e o casamento inter­‑racial para o casamento intra­‑racial, mas não como o casamento incestuoso para os restantes».

Finalmente,
diga-se ainda que o casamento entre pessoas do mesmo sexo é sem dúvida, uma questão que tem de ser conexionada com o mais básico respeito pelos direitos humanos dos cidadãos.

De facto,
que não passe em claro nestas alegações o quanto está previsto no artigo 16º da Constituição,
onde, sob a epígrafe «Âmbito e sentido dos direitos fundamentais» está claramente determinado no seu n.º 1 que
«Os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional»
E no seu n.º 2 que
«Os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a “Declaração Universal dos Direitos do Homem”».

Ora,
e ainda que a possamos considerar já integralmente recebida no conjunto do nosso normativo constitucional,
mas à qual, ainda assim, não poderá deixar de ser dado um inequívoco significado integrador, porquanto, exigido até na própria Constituição,
ainda assim, não poderemos deixar dizer que, logo no seu artigo 1º, a «Declaração Universal dos Direitos do Homem» estabelece que

«Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos»,
os quais, estatui o seu artigo 2º, poderão ser invocados por todos os seres humanos «sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra...».
Depois,
Encontramos claramente determinado no seu art.º 7º que
«Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual protecção da lei.
E que
«Todos têm direito a protecção igual contra qualquer discriminação... e contra qualquer incitamento a tal discriminação».
Finalmente,
mas não menos importante,
e por isso, apesar de já o termos referido, aqui o repetimos,
o n.º 3 do artigo 16º daquela Declaração ainda prescreve:
«A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à protecção desta e do Estado».

Assim, também por este motivo,
isto é, uma vez que se encontram expressamente recebidas na Constituição Portuguesa as garantias estabelecidas na «Declaração Universal dos Direitos do Homem»,
deverão ser asseguradas às famílias, incluindo obviamente também as famílias homossexuais, cujo reconhecimento, como vimos, não sofre contestação nem na doutrina nem na jurisprudência – ordinária ou constitucional –
todas as condições políticas, materiais e, agora aqui, também técnico-jurídicas, que contribuam para a sua efectiva protecção, quer por parte da sociedade, quer por parte do Estado.

Ora,
também por este motivo se torna inequívoco que, numa Ordem Jurídica como a portuguesa, em que somente através do casamento uma família consegue ter plenamente assegurados todos os seus direitos, sejam jurídicos, sociais, patrimoniais ou morais,
então,
por maioria de razão,
deveria assegurar-se também às famílias homossexuais a possibilidade e o acesso ao direito a contraírem casamento,
para que daí, também para essas famílias, decorram todos as garantias e direitos que do mesmo são consequentes,
sob pena de nos encontrarmos, não só perante uma mais do que injustificável violação não só da Constituição Portuguesa, mas também agora, da própria «Declaração Universal dos Direitos do Homem».

Deste modo,
e precisamente a este propósito de «Direitos do Homem» e do quanto, também a esse propósito, tem constituído – já há muito – uma expressa e inequívoca posição ética, materialmente racional e, principalmente, humana,
seria absolutamente imperdoável não recorrer uma vez mais aqui ao esclarecedor brilhantismo do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 247/2005, que constitui, quanto às ora Recorrentes, uma luz de esperança na valoração e no reconhecimento dos seus direitos de igualdade e de plena cidadania:

«Posições doutrinais e jurisprudenciais e ensinamentos de direito comparado que foram abrindo caminho para a defesa, entre nós, de alterações legislativas: "(...) parece seguro que o direito (penal) português DO FUTURO deve caminhar no sentido de não discriminar as relações homossexuais».

Até por que,

uma coisa será sempre certa: o futuro começa hoje.



C O N C L U S Õ E S

x
x
x

As normas que proíbem o casamento entre pessoas do mesmo sexo violam:
- O princípio da dignidade da pessoa humana ( art.º 1.º CRP),
- O princípio da proporcionalidade contido na ideia de estado de direito democrático (art. 2.º CRP)
- O princípio da igualdade (13.º, n.º 2, CRP),
- O regime específico dos direitos, liber­dades e garantias (18.º CRP)
- O direito ao livre desenvolvimento da personalidade (26.º CRP), e
- O direito fundamental de contrair casamento (36.º, n.º 1, CRP),
- O reco­nhe­ci­mento da família como célula social fun­da­men­tal (67.º CRP).

Em suma,
e numa palavra:


Se duas cidadãs, ambas do sexo feminino, pretendem celebrar um contrato de natureza e consequências exclusivamente civis porque pretendem «constituir família mediante uma plena comunhão de vida»,
porque entendem reciprocamente que, por força da sua orientação homossexual, é precisamente com uma pessoa do mesmo sexo, que amam, e com quem prefiguram passar, em comunhão, a sua vida futura,
então,
as normas jurídicas, pelo menos nas partes que os distingue em razão do seu sexo e da sua orientação sexual e que, por isso, os impede de celebrar um simples e mero contrato de natureza e consequências exclusivamente civis são,
obviamente,

INCONSTITUCIONAIS!

Declarando-se, pois, a inconstitucionalidade de tais normas uma vez mais neste Tribunal Constitucional será feita

J U S T I Ç A!


Junta: duplicados legais e suporte informático das presentes alegações.

Junta: Os seguintes «Pareceres» (ou «Declarações»), todos eles elaborados e oferecidos “pro bono” às Recorrentes, o que aqui não pode deixar de se deixar inequivocamente esclarecido e, mais do que isso, com a devida vénia, profundamente reconhecido:

1 – «Parecer» do Prof. Doutor Pamplona Corte-Real;
2 – «Parecer» da Dr.ª Susana Brasil de Brito;
3 – «Parecer» do Dr. Pedro Múrias (online AQUI);
4 – «Parecer» da Dr.ª Margarida Lima Rego;
5 – «Parecer» do Dr. Luís Duarte d’Almeida;
6 – «Parecer» da Dr.ª Isabel Moreira;
7 – «Declaração» do Prof. Doutor Miguel Vale de Almeida;
8 – «Declaração» do Prof. Doutor Júlio Machado Vaz.

Protesta ainda juntar: O «Parecer» do Prof. Doutor David Duarte





O Advogado

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(Luís Grave Rodrigues)

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