sexta-feira, abril 21, 2006

 

O Quarto Passo



Tribunal Cível de Lisboa
xº Juízo
xª Secção
Processo nº x

Alegações de Recurso de
Teresa ... Pires
e
Helena ... Paixão



Exmºs. Senhores
Juizes Desembargadores do Tribunal da Relação de LISBOA:



1º- Vem o presente recurso da decisão proferida pelo Mmº. Juiz a quo, que indeferiu a pretensão das requerentes, que pugnavam pela revogação do despacho proferido pelo Exmº. Senhor Conservador da 7ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa que indeferiu o pedido de instauração do processo de publicações que antecedia a celebração do casamento entre ambas,
2º- com fundamento na alegada violação do disposto no artigo 1.577º e na alínea e) do artigo 1.628º, ambos do Código Civil,
3º- uma vez que as requerentes são do mesmo sexo.

Ora,
4º- não podem as recorrentes conformar-se com esta decisão que, salvo o devido respeito, é ilegal mas que é, sobretudo, profundamente injusta.

Com efeito,
5º- o Mmº. Juiz a quo indeferiu a pretensão das recorrentes fundamentalmente por duas ordens de razões:
6º- a primeira, que se prende com o argumento de que o próprio «princípio da liberdade contratual» estabelecido na lei civil contém em si próprio uma espécie de “auto-limitação” decorrente da sua formulação inicial de onde consta a expressão «dentro dos limites da lei»,
7º- e a segunda, que decorre da interpretação do artigo 36º da Constituição, que impediria a extensão da noção de casamento a pessoas do mesmo sexo porque, diz-se, «a proibição de discriminações não significa uma exigência de igualdade absoluta em todas as situações, nem proíbe diferenciações de tratamento».

No entanto,
8º- e como é óbvio, e não obstante ficar desde já expressamente salvaguardado o devido respeito por opinião diversa, não podem as recorrentes conformar-se com esta posição.

Na verdade,
9º- e em primeiro lugar desde já se diga, que ambas as recorrentes têm personalidade e capacidade jurídica e judiciária e, por isso, plena capacidade matrimonial, tal como esta vem exigida nos artigos 1.596º e 1.600º do C. Civil.
10º- Por isso mesmo, é claro que a decisão do Exmº. Senhor Conservador da 7ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa no sentido de recusar a sua pretensão de casarem uma com a outra se baseia num único fundamento: o de que as recorrentes são do mesmo sexo.

De facto,
11º- é verdade que o artigo 1.577º do Código Civil define casamento como «o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida»,
12º- e que, por sua vez, a alínea e) do artigo 1.628º do Código Civil fere de inexistência jurídica o casamento celebrado entre duas pessoas do mesmo sexo.

Mas,
13º- e antes de mais, de acordo com esta formulação, só poderemos concluir que o casamento não é mais do que um contrato, mas um contrato de natureza exclusivamente civil,
14º- e ao qual, por isso, deveriam ser imediatamente aplicáveis as regras normais da Ordem Jurídica portuguesa,
15º- nomeadamente o princípio mais basilar do regime civilístico português, que é o «Princípio da Liberdade Contratual» programaticamente estabelecido no artigo 405º do Código Civil.
16º- Isto é, o casamento deverá ser encarado como um «negócio jurídico» como qualquer outro,
17º- pois, tal como nos ensinou Mota Pinto (in Teoria Geral do Direito Civil) «o negócio jurídico é uma manifestação do princípio da autonomia da vontade ou princípio da autonomia privada, subjacente a todo o direito privado, e consiste no poder reconhecido aos particulares de auto-regulamentação dos seus interesses, de auto-governo da sua esfera jurídica.
18º- «Significa tal princípio que os particulares podem, no domínio da sua convivência com os outros sujeitos jurídico-privados, estabelecer a ordenação das respectivas relações jurídicas».

Ou ainda:
19º- «Segundo o princípio da liberdade contratual a ninguém podem ser impostos contratos contra a sua vontade... nem a ninguém pode ser imposta a abstenção de contratar».

No mesmo sentido,
20º- Antunes Varela (in Das Obrigações em Geral) definiu contrato como «o acordo vinculativo, assente sobre duas ou mais declarações de vontade, substancialmente distintas mas correspondentes, que visam estabelecer uma regulamentação unitária de interesses contrapostos mas harmónicos entre si»,
21º- constituindo, por conseguinte, «não só fonte de obrigações, mas de direitos reais, familiares e sucessórios».

E também:
22º- «O contrato não é apenas uma expressão da autonomia da vontade individual nas zonas de interesses vitais dominadas pelo direito; é também um instrumento de cooperação entre as pessoas, no plano dos valores que o direito é chamado a servir».

Por isso mesmo,
23º- o princípio a liberdade contratual é estabelecido na nossa Ordem Jurídica para que a Lei «seja continuamente chamada a colaborar com a vontade das partes na disciplina da relação contratual».

Ora,
24º- sendo embora um contrato de natureza civil, e com efeitos exclusivamente civis como qualquer outro, o casamento é um contrato típico que mereceu da lei civil portuguesa uma regulamentação especial.

De facto,
25º- o casamento é um contrato que tem um duplo efeito para aqueles que o celebram quando «pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida»,
26º- aliás em absoluta igualdade de direitos e deveres daqueles que o celebram (cfr. nº 1 do artigo 1.671º do Código Civil),
27º- pois, para além das suas óbvias consequências patrimoniais, que se reflectem de forma tão diversa como são distintos os regimes de bens que podem ser adoptados pelos contratantes,
28º- o casamento, dizíamos, enquanto «fonte de relações jurídicas familiares» por imposição do artigo 1.576º do Código Civil,
29º- tem também consequências não menos importantes de ordem não-patrimonial, por força da peculiar obrigação do cumprimento dos deveres conjugais de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência, mutuamente impostos e garantidos a ambos os contraentes (cfr. artº 1.672º do C. Civil).

Mas,
30º- acontece que, como é óbvio, a disciplina jurídica dos contratos, com o contrato de casamento dentre eles, não se esgota com o conjunto de normas que compõem o Código Civil Português.

Na verdade,
31º- e mesmo até antes de qualquer apreciação dessas normas, haverá que, em primeiro lugar, procurar definir a nossa Ordem Jurídica tal qual ela é programaticamente preconizada pela Constituição da República Portuguesa.

É que,
32º- e uma vez mais citando Mota Pinto (ob. cit) «A Constituição contém, na verdade, uma “força geradora” de direito privado.
«As suas normas não são meras directivas programáticas, de carácter indicativo, mas normas vinculativas que devem ser acatadas pelo legislador, pelo juiz e demais órgãos estaduais».

Por isso,
33º- «Estão assim desprovidas de validade jurídica as disposições legais ordinárias que infrinjam o disposto na Constituição ou ofendam os princípios nela consignados».

E também:
34º- «Os direitos, liberdades e garantias individuais dos cidadãos reconhecidos pela Constituição... são protegidos juridicamente também nas relações entre particulares.
«Tais princípios impõem-se à vontade dos sujeitos jurídico-privados nas suas convenções».

Ou seja,
35º- encontrada a definição civilística e a natureza jurídica do contrato de casamento,
36º- e analisada a ordem jurídica que do ponto de vista exclusivamente civil é composta pelas normas que regulamentam tal tipo de contrato,
37º- haverá agora que analisar a conformidade constitucional de tal conjunto de normas, isto é, da ordem jurídica civil que define o casamento enquanto contrato de natureza exclusivamente civil que é.

Por outras palavras,

38º- haverá que inquirir sobre a constitucionalidade da decisão do Exmº. Senhor Conservador da 7ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa que recusou às requerentes a possibilidade de se casarem uma com a outra pelo simples facto de serem ambas do mesmo sexo,
39º- sendo certo que é plena, total e perfeita a capacidade matrimonial de ambas.

Ora
e na verdade,
40º- a decisão do Exmº. Senhor Conservador da 7ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa é manifesta, clara e inequivocamente inconstitucional!!!

Senão vejamos:
41º- é certo que o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo nunca deixará de constituir numa sociedade tema de interminável debate.
42º- Mas não deixará de constituir tema de debate se, e enquanto, essa mesma sociedade for uma sociedade livre e democrática,
43º- pois noutra, nem sequer tal tema seria admitido a qualquer forma de discussão, sob pena de intermináveis perseguições a quem ousasse questionar o status quo previamente imposto ou estabelecido.
44º- Isto para não falar das inimagináveis consequências para aqueles que ousam querer definir ou viver a sua vida de modo distinto dos cânones estabelecidos, quer por uma autoridade ditatorial quer por uma sociedade intolerante, homofóbica ou misógina que, obviamente, não se pode tolerar nem à qual nos deveremos jamais submeter.

Mas,
45º- de facto, não é disso que aqui se trata!
46º- O que as requerentes pretendem é ver ser-lhes conferido um direito de natureza exclusivamente civil,
47º- constitucionalmente garantido,
48º- mas, ainda assim, civilmente negado,
49º- e sem que alguém interfira na esfera da sua vida privada,
50º- ou sobre elas se arrogue o direito de julgamentos éticos, morais ou de qualquer outra espécie,
51º- que, afinal, contrariem a sua liberdade de determinação numa sociedade que se quer democrática, tolerante e pluralista.

Ora,
52º- se, como se referiu, o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo será sempre tema de infindável debate,
53º- o que é facto é que, uma a uma, de Inglaterra à Holanda, passando pela África do Sul ou pela nossa vizinha Espanha, as mais modernas e desenvolvidas nações têm por esse mundo fora garantido tal direito a quem o pretenda exercer.
54º- A título de exemplo citemos a recente decisão do juiz M. Brooke Murdock, de Baltimore, nos Estados Unidos da América, que declarou inconstitucional uma lei do Estado de Maryland que definia o casamento como um contrato celebrado entre um homem e uma mulher.
55º- Aos detractores de tal opinião que, obviamente, se baseiam não em critérios jurídicos ou de estrita legalidade, mas outrossim de oportunidade baseada em critérios de ordem pessoal, ética, moral ou religiosa, e que, sendo suas, pretendem inexplicavelmente impor aos demais cidadãos,
56º- e com uma eloquência digna de nota escreveu aquele juiz:
«Although tradition and societal values are important, they cannot be given so much weight that they alone will justify a discriminatory statutory classification».
(Embora a tradição e os valores da sociedade sejam importantes, não se lhes pode dar tanto peso que eles, só por si, justifiquem uma classificação estatutária e discriminatória).

Ora,
57º- é assim certo que, independentemente ainda de uma apreciação da sua juridicidade constitucional, mesmo de um ponto de vista exclusivamente civil, não existem já hoje quaisquer razões para que a formulação do texto do artigo 1.577º do Código Civil contenha a expressão «de sexo diferente»,
58º- como, paralelamente, não existe qualquer fundamentação lógica para que a alínea e) do artigo 1.628º do Código Civil continue a estatuir a inexistência jurídica de um casamento celebrado entre duas pessoas do mesmo sexo.

Na verdade,
59º- tais normas deveriam, antes de mais, ter sido submetidas a uma interpretação histórica por parte de quem as aplicou,
60º- com especial relevo para o Exmº. Senhor Conservador da 7ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa,
61º- de modo a que a os seus efeitos se pudessem imediatamente reflectir na esfera jurídica das requerentes,
62º- e, assim, de modo a que um simples contrato de natureza e efeitos exclusivamente civis pudesse ter sido celebrado por duas pessoas que, dotadas de plena capacidade legal para a sua celebração, se apresentaram para esse efeito perante uma entidade para tal revestida de autoridade pública.
63º- Mas que, no entanto, viram ser-lhes vedada essa mesma celebração pelo facto de serem do mesmo sexo,
64º- motivo que, afinal, é não só exterior à natureza e efeitos exclusivamente civis – quer patrimoniais, quer não patrimoniais – do contrato que pretendiam celebrar,
65º- mas que desprezou o facto inegável de que as contratantes possuíam, como referido, plena capacidade matrimonial tal como a mesma lhes é exigida por lei.

Com efeito,

66º- a inclusão da expressão «de sexo diferente» no corpo do artigo 1.577º do Código Civil, se alguma vez se justificou (o que sinceramente se duvida) ou, pelo menos, se algum dia se compreendeu que fosse feita,
67º- já não pode de forma alguma aceitar-se nos dias de hoje,
68º- numa sociedade portuguesa, europeia e moderna, democrática e livre, que se pretende integral e inquestionavelmente desprovida de quaisquer discriminações, em razão do que quer que seja.

Pois,
69º- pensar o contrário seria negar a duas cidadãs, livres, no pleno uso dos seus direitos civis e dotados de plena capacidade jurídica para tal efeito, o acesso e o reconhecimento público e generalizado, entre eles próprios e também erga omnes, à celebração de um simples contrato civil,
70º- que, na própria formulação da lei, lhes possibilite o exercício do direito de «constituir família mediante uma plena comunhão de vida».

Mas,
71º- que não se diga que algum óbice existe a tal objectivo, designadamente ao objectivo que têm as recorrentes de constituir família pelo facto de serem do mesmo sexo.

Pois,
72º- tal argumento constituiria não só uma definição injustificadamente redutora do conceito de «família»,
73º- como poderia também proporcionar um incompreensível e perigoso fundamento para a proibição da celebração do casamento a um homem ou a uma mulher que a ele se apresentassem com o prévio conhecimento da sua esterilidade, ou de qualquer outra impossibilidade física de procriação,
74º- ou até tão simplesmente do prévio acordo entre ambos os nubentes de não quererem ter filhos.

De facto,
75º- assim também pensa Pais de Sousa (in Incapacidade Jurídica dos Menores, 34) quando refere que
«a procriação não faz parte do conceito de casamento. Assim a impotência não constitui um impedimento e só conduz à sua anulação se for desconhecida do outro cônjuge, incurável e já existente ao tempo do casamento».
«É por isso que não se fixa um limite máximo para a idade nupcial».

No mesmo sentido,
76º- escreveu Antunes Varela (in Família, 2ª, 168):
«A plena comunhão a que alude o artigo é elemento essencial do casamento, devendo considerar-se nulas e não escritas quaisquer cláusulas derrogatórias dos deveres recíprocos a que este preceito se refere».
«Trata-se de uma comunhão para toda a vida, não se admitindo a sua celebração dele a termo ou sob condição».
«Pode haver casos de casamento válido com a certeza antecipada de que os nubentes não vão procriar, caso de impotência».
«Essencial é que cada um dos nubentes queira a plena comunhão de vida com o outro como meio de constituir família, criando condições necessárias à plena realização da sua personalidade».

Assim,
e numa palavra,
77º- à luz dos mais modernos conceitos de liberdade individual e de pleno exercício de todos os direitos cívicos por parte dos cidadãos,
78º- à luz da reprovação unânime que nas sociedades modernas hoje merecem todas as formas de discriminação ou diferenciação das pessoas,
79º- motivos mais do que suficientes para o intérprete do século XXI considerar liminarmente derrogada a expressão «de sexo diferente» no corpo do artigo 1.577º do Código Civil,
80º- e também eliminada a alínea e) do artigo 1.628º do mesmo Código,
81º- não existem, de facto, quaisquer fundamentos para impedir duas pessoas do mesmo sexo de celebrarem um “simples” contrato de natureza e consequências única e exclusivamente civis.

Ora,
tanto assim é que
82º- a Constituição da República Portuguesa determina inequivocamente no seu artigo 13º, sob a epígrafe «Princípio da Igualdade»:
«1 – Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
«2 – Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual».

De facto,
83º- e como referem Jorge Miranda e Rui Medeiros (in Constituição Portuguesa Anotada, anot. ao artº 13º),
«A igualdade aqui proclamada é a igualdade perante a lei, dita por vezes igualdade jurídico-formal, e ela abrange, naturalmente, quaisquer direitos e deveres existentes na Ordem Jurídica portuguesa».
«Porque todos têm a mesma dignidade social (outra maneira de referir a dignidade da pessoa humana, base da República), a lei tem de ser igual para todos».
«Mas porque há desigualdades de facto, (físicas, económicas, geográficas, etc.) importa que o poder público e a sociedade civil criem ou recriem as oportunidades e as condições que a todos permitam usufruir dos mesmos direitos e cumprir os mesmos deveres».

Ou seja,
84º- «Igualdade perante a lei não é igualdade exterior à lei. É, antes de tudo, igualdade na lei. Tem por destinatários, desde logo os próprios órgãos de criação do direito»

Contudo,
85º- apesar da clara e inequívoca formulação constitucional deste «Princípio da Igualdade» e mesmo tendo presente a doutrina acima citada, é bem certo – e as recorrentes bem o sabem – que nenhum princípio pode em Direito ser formulado cegamente e desligado da concreta realidade do mundo.

Pois,
86º- tal como foi tão esclarecedoramente formulado pela Comissão Constitucional (Parecer nº 32/82),
«O Princípio da Igualdade não funciona por forma geral e abstracta, mas perante situações ou termos de comparação que devam reputar-se concretamente iguais – e, antes de tudo, à luz de padrões valorativos ou da ordem axiológica constitucional».

Ou também,
87º- «A desigualdade de tratamento será consentida quando, depois de adquirido que os critérios de distinção exigidos pelo legislador se compatibilizam com os objectivos da Lei, se concluir no sentido de a Constituição, à luz dos princípios que adopta e dos fins que comete ao Estado, autorizar o tratamento diferenciado das situações delimitadas na Lei ordinária».
- Acórdão do Tribunal Constitucional nº 76/85

88º- «O princípio da igualdade consagrado no artigo 13º nº 1 da Constituição, não deve nem pode ser interpretado em termos absolutos, impedindo nomeadamente que a lei discipline diversamente quando diversas são as situações que o seu dispositivo visa regular, mas há sem dúvida violação desse princípio quando o legislador estabelece distinções discriminatórias».
- Acórdão do Tribunal Constitucional nº 44/84

Assim,
89º- «a caracterização de uma norma como inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, depende, em última análise da ausência de fundamento material suficiente, isto é, falta de razoabilidade e consonância com o sistema constitucional»
- Acórdão do Tribunal Constitucional nº 309/85

90º- «O princípio da igualdade, numa das suas dimensões, vem a traduzir-se na proibição (dirigida, designadamente ao legislador) de estabelecer diferenciações de tratamento razoáveis, porque carecidas de fundamento ou justificação material bastante...»
- Acórdão do Tribunal Constitucional nº 86/88

91º- «A igualdade, sendo uma exigência de justiça, é, fundamentalmente, uma igualdade proporcional, só consentido distinções que não firam essa ideia de justiça ou de proporção».
- Acórdão do Tribunal Constitucional nº 169/90

92º- «Na perspectiva da proibição do arbítrio, o princípio da igualdade identifica-se com uma proscrição da adopção de medidas manifestamente desproporcionadas ou inadequadas, quer à ordem constitucional de valores, quer à situação fáctica que se pretende regulamentar».
- Acórdão do Tribunal Constitucional nº 203/94

93º- «O princípio da igualdade, que vincula também o próprio legislador, reclama, não que todos sejam tratados, em quaisquer circunstâncias, por forma idêntica, mas sim recebam tratamento semelhante os que se acham em condições semelhantes.
«Quando o legislador constitucional se não limita a enunciar o princípio geral da igualdade, mas especifica os títulos – ou alguns deles – que não podem fundar um tratamento diferenciado entre os cidadãos, tem de entender-se, em princípio, que viola a regra constitucional da igualdade o preceito que dê relevância a um desses títulos para, em função dele, beneficiar ou prejudicar um grupo de cidadãos perante os restantes».
- Acórdão do Tribunal Constitucional nº 371/89

Deste modo,
94º- e sendo certo que a Constituição também claramente prescreve no nº 2 do seu artigo 266º o respeito pelo Princípio da Igualdade (bem como do princípio da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé) por parte dos órgãos e agentes administrativos,
95º- como conciliar a aplicação do Princípio da Igualdade com a celebração de um contrato de casamento entre duas pessoas do mesmo sexo?
96º- Que tratamento constitucional, isto é, como deve ser vista à luz do Princípio da Igualdade a inscrição da fórmula «de sexo diferente» contida no artigo 1.577º do Código Civil e a própria existência da alínea e) do artigo 1.628º do mesmo Código?

Até porque é certo que
97º- « O princípio constitucional da igualdade do cidadão perante a lei é um princípio estruturante do Estado de Direito Democrático e do sistema constitucional global, que vincula directamente os poderes públicos, tenham eles competência legislativa, administrativa ou jurisdicional».
- Acórdão do Tribunal Constitucional nº 186/90

Ora,
98º- a própria formulação histórica do Princípio da Igualdade feita pelo artigo 13º da Constituição é absolutamente esclarecedora.

De facto,
99º- a formulação original daquela disposição constitucional proibia já a discriminação em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social».

Mas,
100º- o que é facto é que o legislador constitucional de 2004 não se deu por satisfeito com esta redacção e com esta formulação do Princípio da Igualdade contida até então no artigo 13º da Constituição.

Por isso,
101º- entendeu o legislador constitucional de 2004 (Lei Constitucional nº 1 /2004) completar a formulação do Princípio da Igualdade acrescentando ao artigo 13º da Constituição a expressão «ou orientação sexual».

Ora,
102º- o significado do aditamento deste «título» (como lhe chamou o acórdão do Tribunal Constitucional nº 371/89 que acima se citou), isto é, deste «reforço» da formulação constitucional do Princípio da Igualdade tem, obviamente, um só significado:
103º- impedir constitucionalmente a discriminação dos cidadãos portugueses também em razão do facto de serem homossexuais.

Deste modo,
104º- se a Constituição Portuguesa como «força geradora de direito privado», nas palavras de Mota Pinto (ob. cit.), terá de ser respeitada e acatada não como «mera directiva programática de carácter indicativo»,
105º- mas como uma norma vinculativa que deve ser imediatamente «acatada pelo legislador, pelo juiz e pelos demais órgãos estaduais».
106º- então constitui inequívoca violação constitucional a aplicação prática por parte de qualquer agente de uma norma que contrarie a determinação constitucional do Princípio da Igualdade em razão da orientação homossexual de um cidadão.

Por outras palavras,
107º- se o Código Civil impede no seu artigo 1.577º a celebração de um simples e mero contrato de natureza e consequências exclusivamente civis, como é o contrato de casamento, a pessoas do mesmo sexo,
108º- então a expressão «de sexo diferente» contida naquela norma é, obviamente, inconstitucional!
109º- E, se já o era por força da redacção original do artigo 13º da Constituição,
110º- dúvidas não poderá haver que o aditamento pelo legislador constitucional de 2004 àquele mesmo artigo da expressão «ou orientação sexual», mostrou agora de modo inequívoco que a formulação constitucional do Princípio da igualdade pretende sem sobra de dúvidas excluir qualquer discriminação de um cidadão em função da sua orientação homossexual.

Ora,
111º- se dois cidadãos do mesmo sexo pretendem celebrar um contrato de natureza e consequências exclusivamente civis porque pretendem «constituir família mediante uma plena comunhão de vida»,
112º- porque entendem reciprocamente que, por força da sua orientação homossexual, é precisamente com uma pessoa do mesmo sexo, que amam, e com quem prefiguram passar a sua vida futura em comum,
113º- então a norma jurídica, pelo menos na parte que os distingue em razão do seu sexo e da sua orientação sexual e que, por isso, os impede de celebrar um simples e mero contrato de natureza e consequências exclusivamente civis, é obviamente inconstitucional!

Mas mais:
114º- está ainda constitucionalmente determinado, mais exactamente no artigo 36º da Constituição, que
«Todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade»,
115º- como no artigo 67º está estatuído que
«A família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros»

Ora, e uma vez mais,
116º- será que uma norma do Código Civil pode, por força de uma distinção em razão do sexo e da orientação sexual de um determinado cidadão, vedar-lhe o acesso à celebração de um contrato de casamento,
117º- pode impedi-lo de «constituir família em plena comunhão de vida» e «em condições de plena igualdade»,
118º- pode impedi-lo de se realizar pessoalmente no âmbito dessa mesma família?
119º- Decerto que não!!!

E não pode,
120º- porque a formulação constitucional do princípio da igualdade contida no artigo 13º da Constituição não o permite!

Até porque,
121º- se virmos bem, nenhuma razão haveria, ao fim e ao cabo, para impedir duas pessoas do mesmo sexo de celebrarem um simples contrato de casamento?
122º- Que razões – jurídicas – poderiam ser invocadas para impedir o acesso a duas pessoas do mesmo sexo que pretendem constituir família?
123º- De facto, nenhumas!
124º- Por isso mesmo, tal foi inequivocamente considerado no acórdão do Tribunal Constitucional nº 309/85, cuja citação não resistimos a repetir:
«Assim, a caracterização de uma norma como inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, depende, em última análise, da ausência de fundamento material suficiente, isto é, falta de razoabilidade e consonância com o sistema constitucional».

Em suma,
125º- Nenhuma razão assiste ao Exmº. Senhor Conservador da 7ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa para ter despachado a recusa da pretensão das recorrentes de contraírem matrimónio uma com a outra,
126º- como nenhuma razão assiste ao Mmº. Juiz a quo, que deu provimento a tal recusa.

De facto,
127º- constando a fundamentação de tal recusa na definição do contrato de casamento constante do artigo 1.577º do Código Civil, que contém a exigência dos nubentes serem «de sexo diferente», e também no teor da alínea e) do Código Civil, que fere de inexistência jurídica o casamento celebrado entre duas pessoas do mesmo sexo,
128º- e sendo tais normas claramente inconstitucionais,
129º- deveriam ter o Exmº. Senhor Conservador, primeiro, e o Mmº. Juiz a quo, depois, admitido a realização do casamento das ora recorrentes.

Na verdade,
130º- e como acima referimos, o Mmº. Juiz a quo começou por considerar que o próprio «princípio da liberdade contratual» estabelecido na lei civil contém em si próprio uma espécie de “auto-limitação” decorrente da sua formulação inicial, de onde consta a expressão «dentro dos limites da lei».

Ora,
131º- se esta formulação parece tão óbvia que qualquer consideração a si contrária resultaria não só ilegal mas também destituída de qualquer senso ou razoabilidade,
132º- também é verdade que para que tal suceda é absolutamente necessário que a mesma seja interpretada no sentido que o legislador lhe quis indubitavelmente conferir.
133º- Isto é, no sentido em que «os limites da lei» significam não os limites deste ou daquele diploma legal, seja ele ou não o Código Civil,
134º- mas os limites da «Ordem Jurídica» portuguesa no seu conjunto, tal como ela se configura e resulta da totalidade de todos os diplomas legais que se encontram vigentes em determinado momento específico e da sua interligação harmónica,
135º- obviamente escalonados de acordo com a sua valoração hierárquica dentro dessa mesma Ordem Jurídica,
136º- e, obviamente ainda, com a Constituição da República no seu inequívoco topo.

Ou seja,
136º- a “auto-limitação” contida na própria formulação do princípio da liberdade contratual, que determina que esta se deverá configurar “dentro dos limites da lei”, somente poderá vigorar na medida em que se interprete essa mesma “auto-limitação” depois de se apreciar a sua conformidade constitucional.

Por outras palavras,
137º- antes de encontrar na própria lei civil essa “auto-limitação” ao princípio da liberdade contratual, deveria o Mmº. Juiz a quo ter apreciado previamente a sua conformidade constitucional.
138º- Pois, se for encontrada na própria lei civil uma derrogação do princípio da liberdade contratual que esteja, à partida, ferida de inconstitucionalidade, como aqui se defendeu, então deverá cumprir-se a hierarquia das normas, tal como a mesma se configura na Ordem Jurídica portuguesa,
139º- e a cuja obediência e respeito todos estamos vinculados, dos particulares aos Tribunais, passando pelo próprio Conservador do Registo Civil,
140º- de acordo, até, com a expressa determinação do artigo 18º da Constituição.

Depois,
e ainda como acima se referiu,

141º- constituiu ainda argumento do Mmº. Juiz a quo para negar provimento à pretensão das recorrentes a interpretação do artigo 36º da Constituição, feita no sentido de que o mesmo impediria a extensão da noção de casamento a pessoas do mesmo sexo porque, diz-se, «a proibição de discriminações não significa uma exigência de igualdade absoluta em todas as situações, nem proíbe diferenciações de tratamento».

Ora,
142º- se é efectivamente verdade que «a proibição de discriminações não significa uma exigência de igualdade absoluta em todas as situações, nem proíbe diferenciações de tratamento»,
143º- também é verdade que, como é referido pelo próprio juiz a quo, que não existe uma proibição absoluta de discriminações no tratamento legal de uma dada matéria, mas tão somente que essas discriminações seja arbitrárias ou irrazoáveis, isto é, desprovidas de fundamento material bastante, designadamente a chamada discriminação intolerável.

No entanto,
144º- o que é verdade é que não se encontra nenhuma razoabilidade na proibição da celebração de um mero e simples contrato de natureza civil depois de se apurar a orientação sexual de quem o pretende celebrar!

Pelo contrário,
145º- o sentido da Ordem Jurídica de um determinado Estado tem de ser encontrado sucessivamente no tempo.
146º- E o que é facto é que o legislador constitucional, como acima se referiu, quis expressamente completar a formulação do Princípio da Igualdade acrescentando ao artigo 13º da Constituição a expressão «ou orientação sexual».

E mais:
147º- se virmos bem, e paradoxalmente, é o próprio argumento utilizado pelo Mmº. Juiz a quo quando cita a obra de Gomes Canotilho e Vital Moreira, que melhor clarifica a inconstitucionalidade e a irrazoabilidade da proibição do casamento a pessoas do mesmo sexo!

Senão vejamos:
148º- diz o Mmº. Juiz a quo citando aqueles autores que
«basta o princípio do Estado de Direito democrático e o princípio da liberdade e autonomia pessoal que lhe vai naturalmente associado para garantir o direito individual de cada pessoa a estabelecer a vida em comum com qualquer parceiro da sua escolha»
«Mas uma coisa é a sua protecção ao nível da liberdade e da autonomia individual, outra coisa é o seu reconhecimento e garantia específica a título de direito à constituição de família ou de celebração de casamento».

Ora,
149º- o que é facto é que este argumento é absolutamente inadmissível, precisamente num Estado de Direito democrático!
150º- Tanto, que o próprio juiz a quo se quis expressamente demarcar da posição daqueles autores (o que se elogia), quando disse logo após citá-los que
«Independentemente da questão de as uniões de facto homossexuais serem também uma forma de constituir família...»

Mas,
151º- ainda assim, continua a ser um argumento tão inaceitável como irrazoavelmente preconceituoso!
152º- Pois, aceitá-lo significaria aceitar uma sociedade que quer tapar o Sol com uma peneira e varrer para debaixo do tapete uma parte dos seus cidadãos, só porque nasceram com uma orientação sexual “diferente da dos cânones oficiais”.
153º- Aceitar este argumento, significaria não mais do que dizer a esses cidadãos que uma coisa é poderem existir, viverem uns com os outros em comum e em liberdade, sim,
154º- mas outra coisa seria ser-lhes reconhecido o direito a atribuírem força e forma legal a essa união tal como é possibilitado aos demais cidadãos,
155º- por exemplo para assegurarem mutuamente direitos sucessórios, de pensões de sobrevivência, de comunhão patrimonial, de transmissão de arrendamentos, etc.

Por outras palavras,
156º- seria permitir-lhes uma vivência de «faz de conta», mas destituída de qualquer força e consequências legais,
157º- unicamente pelo simples facto de serem do mesmo sexo.
158º- Se o Mmº. Juiz a quo falou, e muito bem, em discriminações arbitrárias e irrazoáveis,
159º- deveria também ter reconhecido que é inequivocamente arbitrário e irrazoável, isso sim, impedir o acesso a duas pessoas, só porque são do mesmo sexo, à celebração de um contrato de comunhão de vida que lhes confere consequências patrimoniais e não-patrimoniais que desejam ver incluídas nas suas esferas jurídicas,
160º- ao mesmo tempo que, hipocritamente, lhes confere o direito de viverem juntas, embora em silêncio, escondidas, e «sem fazerem ondas».

Pois uma coisa é certa:
161º- independentemente do que se defenda que a Ordem Jurídica portuguesa estabelece de facto e em concreto,
162º- e, por isso, independentemente da legalidade ou não da decisão do Conservador do Registo Civil e do Mmº. Juiz a quo,
163º- não há, de facto, nenhum motivo para uma sociedade moderna e democrática, como não há qualquer razoabilidade para em Portugal se impedir que duas pessoas do mesmo sexo se associem numa união familiar, para “constituírem família em plena comunhão de vida”,
164º- isto é, para se impedir que celebrem um contrato de casamento,
165º- com isso buscando quer as consequências de ordem pessoal quer as consequências de ordem patrimonial que do mesmo advêm,
166º- até porque isso representa não mais do que reconhecer, como o fez o Mmº. Juiz a quo, que «a sociedade está em constante mudança».

Ora,
167º- se, de facto, se reconhece que não existe qualquer razoabilidade para tal proibição,
168º- o que é facto é que não a reconhecer na Ordem Jurídica é, antes de mais, defender a irrazoabilidade da própria Ordem Jurídica.
169º- O que seria um absurdo!
170º- A Constituição da República Portuguesa é, na formulação dos Direitos Liberdades e Garantias que confere aos cidadãos, uma das mais avançadas do mundo.
171º- Já o era até aquando da formulação original da redacção do seu artigo 13º.
172º- Muito mais o é quando o legislador constitucional quis expressamente incluir nessa formulação a expressão «orientação sexual».
173º- Será essa inclusão inútil e destituída de sentido?
174º- Decerto que não!

Então,
175º- Para que servirá tal formulação constitucional, senão para reconhecer aos cidadãos que em função da sua orientação sexual, isto é, pelo facto de serem homossexuais, pretendem associar-se familiarmente com pessoas que serão, obviamente e por isso, do mesmo sexo?
176º- A resposta só poderá ser uma: impedir o acesso à celebração de um simples contrato de natureza civil a duas pessoas só porque estas são do mesmo sexo é, inequivocamente, inconstitucional!

Finalmente,
177º- diga-se ainda que o casamento entre pessoas do mesmo sexo é sem dúvida, uma questão que tem de ser conexionada com o mais básico respeito pelos direitos humanos dos cidadãos.

De facto,
178º- e por isso mesmo, merece aqui destaque a recente decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (no célebre acórdão Goodwin) que, não obstante cometer a responsabilidade legislativa sobre os casamentos entre pessoas do mesmo sexo aos Estados subscritores da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (entre os quais se encontra Portugal),
179º- não deixou de reconhecer a uma pessoa transexual, depois de uma mudança cirúrgica de sexo, o direito ao casamento com outra pessoa do mesmo sexo biológico determinado à nascença.
180º- No mesmo sentido, é ainda de realçar que na sua «Resolução sobre a igualdade de direitos dos homens e mulheres homossexuais na Comunidade Europeia» (A3-0028/94 de 8 de Fevereiro), o Parlamento Europeu, instou a Comissão a apresentar um projecto de recomendação que pusesse termo à «exclusão de pares homossexuais da instituição do casamento ou de um enquadramento jurídico equivalente, devendo igualmente salvaguardar todos os direitos e benefícios do casamento, incluindo a possibilidade de registo de uniões».


Assim,
e em suma,

181º- dando-se provimento ao presente recurso e revogando-se o despacho do Exmº. Senhor Conservador do Registo Civil e também a sentença do Mmº. Juiz a quo que a confirmou, será feita
J U S T I Ç A!


C O N C L U S Õ E S

.
.
.

Valor: xxx
Junta: xxx



O Advogado



This page is powered by Blogger. Isn't yours?